quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Le Clézio


Durante anos eu não conheci outra coisa que não fosse o pequeno quintal da casa e a voz de Lalla Asma gritando meu nome: «Laila!». Como eu disse, não sei qual é o meu verdadeiro nome, mas tenho me acostumado com o que me pôs minha senhora, como se fosse o que minha mãe escolheu para mim. Mas também penso que algum dia alguém vai me chamar pelo meu verdadeiro nome e que então me estremecerei e o reconhecerei.
Lalla Asma também não era o verdadeiro nome da minha senhora. Ela chamava-se Azzema e era judia espanhola. Quando explodiu a guerra entre os judeus e os árabes, no outro extremo do mundo, ela foi a única que não abandonou o Mellah. Ficou trancada atrás da grande porta azul e se recusou a sair. Até que uma noite eu cheguei e tudo mudou na vida dela.
Eu a chamava as vezes de «senhora» e outras de «vó», porque ela foi quem me ensinou a ler e escrever em francês e em espanhol, me iniciou no cálculo e na geometria e me transmitiu as bases da religião -a dela, na que Deus não tem nome, e a minha, na chama-se Alá-. Ela lia para mim passagens dos seus livros sagrados e me ensinava tudo que eu não devia fazer, como assoprar sobre o que a gente vai comer, por o pão virado ou limpar as partes íntimas com a mão direita. Ela me dizia que há de se dizer sempre a verdade e lavar todos os dias dos pés à cabeça.
Em troca, eu trabalhava para ela da manhã até a noite no quintal, passando a vassoura, cortando lenha para o fogão ou lavando roupa. Eu gostava muito de subir no teto para estender a roupa: de lá eu via a rua, os tetos das casas vizinhas, as pessoas que passavam, os carros e inclusive um pedaço do grande rio azul. Desde lá os ruidos pareciam-me menos terríveis. Eu achava que estava fora do alcance de todos.
Quando ficava muito tempo no teto, Lalla Asma gritava meu nome desde o grande quarto cheio de almofadas onde ela ficava o dia inteiro. Me dava um livro para que eu lesse ou bem fazia ditados e me perguntava coisas das lições anteriores.
Como recompensa, me deixava ficar com ela na sala e colocava os discos dos seus cantores preferidos: Um Kalsum, Said Darwich, Hbiba Misika, e especialmente Fayruz, com voz grave e rouca dele, e a formosa Fayruz Al Halabiyya, que canta Ya Kudsu. Toda vez que ela ouvia o nome Jerusalém, Lalla Asma começava a chorar.

O peixe dourado (Poisson d'or, 1999) (fragmento), de Jean-Marie Gustave Le Clézio, prêmio Nobel de Literatura 2008, escritor do desarraigamento que se diz orgulhosamente metade francês e metade da Ilha Maurício; e que sustenta que o romance é "o melhor sistema para entender o mundo"
Versão para o português de Juan Trasmonte
Foto de Le Clézio da Agência AFP

6 comentários:

Philipe disse...

Olá

Seu link foi adicionado no zoomdigital.org
Obrigado por mudar
atenciosamente
PHilipe carodso

Cecilia Alfaya disse...

Eu li a matéria no Blogueiro Repórter, adorei, tb acho q a enciclopédia livre não é confiável, por um motivo óbvio, nem todo mundo é confiável, ou melhor, quase ninguém n é mesmo?

Beijos querido, parabéns pelo blog!

Anônimo disse...

Super bacana!

Juan Trasmonte disse...

Infelizmente é assim, Ciça. Seria legal que a gente pudesse confiar mais.
Bjs.

Juan Trasmonte disse...

Valeu Tâmara. Obrigado por voltar sempre
bjs

Anônimo disse...

Oi Juan,nao pode faltar Roman Polansky em "The Tenant", na Argentina conhecida como "El Inquilino"...Bj.
Picoroco