sábado, 31 de maio de 2008

Alberti no Paraná




Foram vinte e quatro anos de exílio na Argentina os vividos pelo poeta espanhol Rafael Alberti, depois da revolução franquista. Dessa fase ficam muitas lembranças e uma abundante obra. O poema "Canción 8" pertence ao "Poemas y canciones del Paraná". Essa é a reprodução da versão caligrafada pelo autor.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

A extremista Janeane


"A única coisa que lhe-interessa a Hollywood é saber se você ficou velha ou gorda".


Definição da atriz Janeane Garofalo que, pelas suas idéias e a sua posição contrária à atuação dos Estados Unidos no Iraque, é chamada por lá de liberal, ou seja, para o pequeno arco político deles é quase uma extremista.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Chesterton, a imprensa e a lei


Eu não negaria uma entrevista nem sequer a um jornal de propriedade de um desses milhonários capitalistas que detesto. Hoje em dia a imprensa só se faz eco dos poderosos. Seu verdadeiro objetivo deveria ser oferecer ao público a oportunidade de expor os seus pontos de vista.
Bem, de que quer que eu fale agora? Tenho disposição para lhe-oferecer minha opinião sobre qualquer assunto, mesmo se eu não souber nada a respeito.
Eu não sou um imperialista no sentido moderno do termo; a única teoria do imperialismo que acho sólida é a de Dante. Ele defendia o Império romano como o melhor governo humano, sobre a base incontestável de que o melhor governo humano provavelmente crucificaria Deus. César tinha que respeitar as leis porque Cristo tinha que morrer nas mãos da lei.

Esse monólogo é a introdução que o escritor, poeta e teólogo Gilbert Keith Chesterton fez quando foi entrevistado pelo jornalista e biógrafo Hugh Lunn, em 1912.
Conhecido pelas histórias de detetives em série protagonizados pelo personagem do padre Brown, G.K. foi um ensaísta polêmico, estudoso de São Francisco de Assis e também tomista. E retratado por Lunn nessa entrevista como um homem desencantado por baixo da aparência afável.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Lembrar Newton Mendonça é justo e necessário



Briga nunca resolveu
Não adianta chorar
O nosso amor não morreu
Podes voltar, deves voltar
O meu amor foi sincero
Talvez sincero demais
Se eu fingisse ninguém saberia
O que a verdade me faz
E quando o dia amanhece
Fico a lastimar
Na noite em que não dormia
Passei a chorar, a chorar
Se é verdade que o amor ilumina
Nossas vidas sem luz sem calor
Eu repito baixinho, baixinho
Podes voltar, deves voltar.

Brigas (Deves voltar), de Newton Mendonça e Tom Jobim

"Era tudo misturado", respondia Tom Jobim quando teimavam em lhe-perguntar como funcionava a parceria entre ele e Newton Mendonça. Mas o Tom nunca deu maiores detalhes sobre o assunto.
O seu biografo Marcelo Câmara, descreve Newton como um garoto quase autodidata que aprendeu as primeiras lições de violino e piano com a mãe. Sozinho, ele sentou ao piano por mais de oito anos. Oduvaldo Lacerda dizia uma frase bela: "arrancava a música dele".
Só João Gilberto e Baden parece que conseguiam decifrar qual parte era "jobiniana" e qual "mendonçana" nas maravilhosas Meditação, Desafinado e Samba de uma nota só, por citar as mais populares do encontro artístico deles. Deixo aqui a letra de uma das esquecidas, a belíssima Brigas (Deves voltar).
No ano em que a velha nova bossa nova faz cinqüentinha, é justo e necessário lembrar Newton Mendonça que nem sequer, chegou a viver a consagração da batida diferente.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Estigma


Pessoas deixam marcas
água na terra lama
almas alagadas
marcas pessoas maré
pessoas marcha a-ré
pessoas são como agulhas
comem pelas bordas
zumbam na orelha
foto flash na pele
lume quieta cicatriz
pessoas não são leves
não quebram como cristal
nem andam de lá pra cá
com passos de bailarina
pessoas locomotivas
pessoas loucos motivos
pedras dedo na chaga
entram pela porta
ficam na sala de espera
salgam sua salada
depois bebem sua água
pessoas deixam marcas
migalhas nas entranhas
deixam marcas.

Estigma, de Juan Trasmonte (Creative Commons)
Foto de Cézayän

Pollack, o ator que dirigia atores






"Na verdade eu gosto dos fracassos tanto quanto dos sucessos. Acontece que o mundo não gosta de fracassos"
Sydney Pollack (1934-2008)

Lá vai um dos últimos grandes diretores de atores do cinema dos Estados Unidos. E como bom ator que era, não gostava de ensaiar, mas ficava horas e horas falando com os seus intérpretes sobre os personagens. Produziu ele mesmo seus filmes, era dos que acreditavam que um cineasta é um narrador de histórias e que no cinema estão envolvidas todas as formas da arte.
Na foto do meio, Pollack dirige Jane Fonda no The Electric Horseman, e na última, ele contracena com George Clooney no longa Michael Clayton

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Ali Farka Touré


Ele costumava dizer que Mali é a livraria da história musical africana. Artistas como Amadou et Mariam e o próprio Toumani Diabaté, metade músico, metade griot, parecem confirmar essa teoria.
Touré achou, sem sustento acadêmico, a linha invisível que une os riffs hipnôticos das músicas ancestrais de Mali com o blues americano. Ficou conhecido nessa parte do planeta depois de gravar com o guitarrista, produtor e buscador de tesouros Ry Cooder.
As músicas de Touré, que afirmava ter conexão com os espíritos, falavam de honrar o passado e viver na virtude.
Em 2000, seis anos antes de morrer, só fez shows esporádicos em Bamako e criou uma fundação para passar seus conhecimentos para músicos novos. Mas, basicamente, ele voltou para o seu sítio porque, dizia: "antes de tudo, eu sou um granjeiro".

Foto de Ali Farka Touré de Jonas Karlsson

domingo, 25 de maio de 2008

O que significam as Ítacas?



Cuando partas hacia Itaca
pide que tu camino sea largo
y rico en aventuras y conocimiento.
A Lestrigones, Cíclopes
y furioso Poseidón no temas,
en tu camino no los encontrarás
mientras en alto mantengas tu pensamiento,
mientras una extraña sensación
invada tu espíritu y tu cuerpo.
A Lestrigones, Cíclopes
y fiero Poseidón no encontrarás
si no los llevas en tu alma,
si no es tu alma que ante ti los pone.

Pide que tu camino sea largo.
Que muchas mañanas de verano hayan en tu ruta
cuando con placer, con alegría
arribes a puertos nunca vistos.
Detente en los mercados fenicios
para comprar finos objetos:
madreperla y coral, ámbar y ébano,
sensuales perfumes, -tantos como puedas-
y visita numerosas ciudades egipcias
para aprender de sus sabios.

Lleva a Itaca siempre en tu pensamiento,
llegar a ella es tu destino.
No apresures el viaje,
mejor que dure muchos años
y viejo seas cuando a ella llegues,
rico con lo que has ganado en el camino
sin esperar que Itaca te recompense.

A Itaca debes el maravilloso viaje.
Sin ella no habrías emprendido el camino
y ahora nada tiene para ofrecerte.
Si pobre la encuentras, Itaca no te engañó.
Hoy que eres sabio, y en experiencias rico,
comprendes qué significan las Itacas.

Versão em português

Se partires um dia rumo a Ítaca,
faz votos de que o caminho seja longo,
repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o colérico Posídon te intimidem;
eles no teu caminho jamais encontrarás
se altivo for teu pensamento, se sutil
emoção teu corpo e teu espírito tocar.
Nem Lestrigões nem os Ciclopes
nem o bravio Posídon hás de ver,
se tu mesmo não os levares dentro da alma,
se tua alma não os puser diante de ti.

Faz votos de que o caminho seja longo.
Numerosas serão as manhãs de verão
nas quais, com que prazer, com que alegria,
tu hás de entrar pela primeira vez um porto
para correr as lojas dos fenícios
e belas mercancias adquirir:
madrepérolas, corais, âmbares, ébanos,
e perfumes sensuais de toda espécie,
quando houver de aromas deleitosos.
A muitas cidades do Egito peregrina
para aprender, para aprender dos doutos.

Tem todo o tempo Ítaca na mente.
Estás predestinado a ali chegar.
Mas não apresses a viagem nunca.
Melhor muitos anos levares de jornada
e fundeares na ilha velho enfim,
rico de quanto ganhaste no caminho,
sem esperar riquezas que Ítaca te desse.

Uma bela viagem deu-te Ítaca.
Sem ela não te ponhas a caminho.
Mais do que isso não lhe cumpre dar-te.
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.

Versão em catalão

Quan surts per fer el viatge cap a Ítaca,
has de pregar que el camí sigui llarg,
ple d'aventures, ple de coneixences.
Has de pregar que el camí sigui llarg,
que siguin moltes les matinades
que entraràs en un port que els teus ulls ignoraven,
i vagis a ciutats per aprendre dels que saben.
Tingues sempre al cor la idea d'Ítaca.
Has d'arribar-hi, és el teu destí,
però no forcis gens la travessia.
És preferible que duri molts anys,
que siguis vell quan fondegis l'illa,
ric de tot el que hauràs guanyat fent el camí,
sense esperar que et doni més riqueses.
Ítaca t'ha donat el bell viatge,
sense ella no hauries sortit.
I si la trobes pobra, no és que Ítaca
t'hagi enganyat. Savi, com bé t'has fet,
sabràs el que volen dir les Ítaques.

Itaca, de Konstantinos Kavafis
Versão em português de José Paulo Paes
Versão em catalão de Carles Riba, adaptada por Lluís Llach

Conheci esse maravilhoso poema do poeta grego Konstantinos Kavafis há uns quantos anos, pela adaptação da tradução ao catalão de Carles Riba, que Lluís Llach fez para Viatge a Ítaca, seu album mais emblemático.
Na sua circularidade, esse poema descreve para mim a trajetória de vida do meu pai, o que le confere, além de todos os valores literários, um valor emotivo imenso. O tempo, que foi curto para tantas outras experiências, me permitiu compatilhar esse sentimento e essas letras com ele.

sábado, 24 de maio de 2008

O diretor e seu fetiche



"Sempre tenho a impressão que um filme existe antes de ser feito. Só devemos juntar as peças, os rostos, as palavras, os sons".

Foto de David Lynch e Isabella Rossellini sob a lente maravilhosa de Helmut Newton.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

A volta por cima de Melingo


Su historia empezó una tarde,
en el preciso momento
en que fue a dar a un convento,
pues según ella contó,
su mama la abandonó
en el Mercado de Abasto
y atorrando en un canasto
una monja la encontró.

Después de cumplir los quince
dio el primer paso fulero.
Se acoyaró a un quinielero
creyéndolo un buen partido.
Era un negrito fornido
que, por ser rana y de oficio,
cuando entró a junarle el vicio
la empezó a fajar tupido.

Y al cabo de cierto tiempo
de aguantiñar tanta biaba,
cayó de suerte la taba
y su premio fue un mishé.
De aquí en más, lo que yo sé,
es que éste adornó su frente,
además de un regio ambiente
por Larrea y Santa Fe.

Y así, como en pleno mate
en el que el agua se acaba,
se cortó lo que se daba.
¡Muy poco el piolín se estira!
Nadie por ella suspira,
su escracho destila pena,
y hoy llora a lo Magdalena
al escuchar Yira Yira.

A lo Magdalena, de Luis Alposta y Daniel Melingo
Foto de Philippe Cabaret


Os europeus chamam o cantor e músico argentino Daniel Melingo de "O Tom Waits do tango". Se bem sempre são meio injustas essas etiquetas que usam o nome de alguém para definir um terceiro, no caso, a imagem está perto do que o ouvinte iniciante pode perceber.
O Melingo virou o xodó de franceses e ingleses que viram nele o tango mais clássico com atitude rocker. Ele vem do rock, de bandas fundamentais da Argentina como Los abuelos de la nada e Los Twist. Ele vem dos excessos dos anos oitenta. E traz tudo isso na garganta. Como disse o padre e filósofo Hugo Mujica, alguém vem nessa voz. Melingo traduz tudo isso em tangos próprios ou parcerias com os maiores poetas lunfardos (a gíria porteña). A tradição profunda da música urbana de Buenos Aires está aí, mas com cheiro de contracultura atual.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

De Marconi ao celular


- Como faz o senhor para relaxar?
- Eu adoro conduzir e ouvir música. Tive uma boa educação musical. Tocar piano, desenvolver minha percepção de sons delicados e harmoniosos tem sido, científicamente, uma grande ajuda.
- Qual é a sua rotina?
- Acordo às oito. Às oito e trinta tomo café. Às nove trabalho.
- O senhor não cansa nunca de trabalhar?
- Físicamente sim, mas nunca tenho me sentido saciado no que diz respeito dos meus experimentos.
- Quando o senhor acha que as ondas de rádio vão dar a volta ao mundo?
- Não saberia dizer.
- Apresenta alguma dificuldade a curvatura do planeta?
- Por enquanto, nenhuma.
- Qual foi a maior distância de transmissão de mensagens até agora?
- Desde a Grã-Bretanha até a Argentina
- E o tempo exato de transmissão?
- Uma fração de segundo.

Faz 110 anos o italiano Guglielmo Marconi fez a primeira transmissão pelo telégrafo sem fios. Há duas semanas fui "convidado" pela companhia para trocar de celular porque meu velho tem ficado obsoleto e vai ficar fora da tecnologia atual. Meu velho Nokia brasileiro que todos achavam o máximo há só uns cinco anos.
Por esses dias um comercial de televisão -francamente engraçado- mostra um juiz absolvendo um adolescente que tinha vergonha do seu celular velho. O comercial é engraçado mas a mensagem é patética. Então melhor voltar às fontes de vez em quando. Sem abrir mão das maravilhas da modernidade é preciso lembrar que a vida sem celular também pode ser ótima e que as causas de humilhação deveriam ser outras. Todos que lucram da telefonia celular deveriam acender uma vela a cada dia para Marconi.
Fica aqui um trecho de uma entrevista que Kate Carew fez em 1912 ao inventor e que foi publicada no New York Tribune.

Versão para o português de Juan Trasmonte

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Darcy da Mangueira


Vem...Ouvir de novo o meu cantar
Vem ouvir as pastorinhas
A luz de um pássaro cantor
Yes nós temos Braguinha
Bela época
Quando o poeta floresceu
Oh! meu Rio
Então cantando amanheceu
Num fim de semana em Paquetá
Ouvi Carinhoso amei ao luar

Laura... que não sai da minha mente
Morena a saudade mata a gente

Hoje tem fogueira
Viva São João
Mané fogueteiro
Vai soltar balão

Carnaval!
O povo vibra de alegria
Ao cantar a tua poesia
Será que hoje tudo já mudou
Onde andará o arlequim tão sonhador
Chora pierrô, chora
Se a tua colombina foi embora
Canta!
A mulata é a tal
Salve a lourinha
Dos olhos claros de cristal

É no balancê-balancê,
Eu quero ver balançar
É no balanço que a Mangueira vai passar

Yes, nós temos Braguinha, samba enredo de 1984, de Darcy da Mangueira, Hélio Turco, Arroz, Jajá e Comprido


"Um bom samba tem de ser detalhado e não descartável".
Darcy da Mangueira (1932-2008)

Partiu o grande compositor mangueirense Darcy da Mangueira e com ele vão embora cinco décadas de samba. Fica o legado maravilhoso de muitos sambas enredo campeões como esse que homenageia Braguinha, O mundo encantado de Monteiro Lobato e Samba, festa de um povo. A nação verde e rosa está em silêncio.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

Está um vazio


Patagonia
feriadão
cabeça de mosquito
está vazio
está um vazio
nem folha em branco
nem celulose
é uma folha
que ainda está
no centro da árvore
que está no campo vazio
não há cavalo por perto
nem serra elêtrica
é um vazio
que está na fonte
do nada
nem embalagem
nem envelope
nem vasilhame
nem duvidar
sangue sem voz
corpo sem sangue
está vazio
está um vazio
maior que a esquina
da tua casa
mais alto que adulto
mais fundo que húmus
presso na unha
pauladas
baldes
cursinhos
teorias
pernas
ursinhos
volume
vaga
argamassa
não cobrem
vazio presso na unha.

Está um vazio, de Juan Trasmonte (Creative Commons)
Foto "Calle Corrientes", de Horacio Cóppola (1936)

domingo, 18 de maio de 2008

Nothing's gonna change my world






Como muitos jovens na época, o fotógrafo Paul Saltzman viajou à India para se encontrar. Não sabemos se ele se encontrou mas ele encontrou os Beatles que estavam lá seduzidos pelas palavras do Maharishi Mahesh. Foram os tempos do peace and love, o vegetarianismo e a meditação transcendental.
Também foram lá Cynthia Powell, então mulher do John; a namorada de Paul, Jane Asher; a namorada de George, Pattie Boyd -aquela do escándalo com Clapton- ; Maureen, primeira mulher de Ringo; e Mia Farrow, tentando fugir da depressão apôs o fim do casamento com Sinatra.
Quarenta anos depois, ficou esse documento impressionante de Saltzman e dezessete músicas que foram incluídas no White Album.
Na foto em que aparecem John, Paul e Ringo, eles estão cantando o refrão de Obladi Oblada. Segundo Saltzman, a música só tinha refrão nesse momento.

Fotos de Paul Saltzman

sábado, 17 de maio de 2008

O anarquista apaixonado





Sentados um de frente para o outro, ela segurou as mãos dele e levantou a cabeça para se perder na imensidão azul dos olhos dele. Como quase sempre acontecia, não tinham muito tempo. Mas as urgências não murcham o amor. Por isso um olhar só pode deter o relógio.
Um homem chegou pra ele, tirou do bolso um maço de cigarros, lhe ofereceu um e perguntou:
- Vai querer alguma coisa?
- Un caffe molto dolce -respondeu ele-
A quase criança ouviu os pasos do homem se afastarem para as trevas e uns instantes depois viu o homem voltar das trevas com uma xícara na mão.
Fina tentou arrumar a gola da sua camisa. Por um momento lembrou do dia em que se conheceram, no jardim das begônias. “As begônias estão tristes”, havia dito ela.
Se passaram seis minutos antes de que viessem buscá-la. Ninguém sabe o valor que têm seis minutos.
Se abraçaram. Ninguém chorou.

- Adeus, serei sempre sua… -disse Fina-. E Severino pediu para ela continuar estudando. Nem sequer o guardião ousou cometer a obscenidade de interromper esse instante. Esperou até eles se afastarem para algemar novamente Severino e conduzi-lo diante do pelotão.

Esse texto conta os últimos minutos da vida de Severino Di Giovanni, anarquista italiano que atuou na Argentina na segunda metade da década de vinte e foi fusilado em 1931 pelo governo ilegítimo de Uriburu.
Escrevi o texto para o programa de rádio Doble Equis. Ele reconstrói com citas mais ou menos reais a despedida do anarquista da sua namorada de quinze anos, Fina (América Scarfó).
Para mim sempre foi fascinante que o homem tido na época como o inimigo público número um, "o maior malvado que pisou terra argentina", aos dizeres das autoridades, fosse apaixonado dessa maneira por uma adolescente.
Em 1999 o governo devolveu a Fina, já com 86 anos, as cartas de amor escritas por Severino na prisão, que ficaram guardadas nos arquivos policiais. A mulher lembrou com poucas palavras os tempos em que as pessoas eram capazes de entregar a vida pelas suas idéias.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Renato Teixeira, o folk brasileiro


Sentimental eu fico
Quando pouso na mesa de um bar
Eu sou um lobo cansado carente
De cerveja e velhos amigos
Na costura da minha vida
Mais um ponto
No arremate do sorriso mais um nó
Aqui pra nós cantar não tá pra peixe
Tem coisa transformando a água em pó
E apesar de estar no bar caçando amores
Eu nego tudo e invento explicações
Amigo velho amar não me compete
Eu quero é destilar as emoções

Sentimental eu fico . . .

E os projetos todos tolos combinados
Perecerão nas margens da manhã
Uma tontura solta na cabeça
Um olho em Deus e outro com satã
E quando o sol raiar desentendido
Eu vou ferir a vista no amanhã
E olharei para quem vai pro trabalho
Com os olhos feito os olhos de uma rã.

Sentimental eu fico, de Renato Teixeira
Foto de Sandro Takahashi

Se há um folk brasileiro, ele tem o nome de Renato Teixeira. Poeta do auténtico sertanejo, suas crônicas, principalmente do cotidiano e do existencial do homem rural estão -embora não reconhecidas assim pela grande mídia e a intelectualidade da MPB- nas páginas mais gloriosas da música brasileira.
São mais de quarenta anos de estrada para o criador de Romaria, Frete e tantas outras belíssimas que tudo mundo canta, incluídos todos os que nem sabem quem é Renato.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Danny Glover e os cegos


"A questão com o Katrina não é o que o governo fez ou deixou de fazer. É que aquelas pessoas eram invisíveis para nós, assim como são no Iraque ou em Darfur. Nós vivemos num mundo em que não vemos pessoas".

A frase foi dita por Danny Glover na coletiva apôs a apresentação no Festival de Cannes do filme Ensaio sobre a cegueira (Blindness), dirigido por Fernando Meirelles, que é versão cinematográfica do livro de José Saramago.
O ator já é bem conhecido pelo seu envolvimento em campanhas contrárias à guerra e pela sua ferrenha oposição ao governo Bush. Essa síntese da metáfora do romance, exposta ao mundo ao lado do tapete vermelho de Cannes, é uma perola.


A foto de Reuters (poderiam ter colocado o nome do fotógrafo, hein) mostra o ator no backstage das filmagens.
Com meu agradecimento a Ré D'elia pelo link.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Nos bastidores com Nigel Dick


Diretor de mais de 280 videoclipes, além de documentários, shows e filmes, Nigel Dick aparece aqui nos bastidores das filmagens do clipe Don't look back in anger, com os rapazes do Oasis e o grande ator inglês Patrick McNee.

Foto de Johnny Buzzerio

terça-feira, 13 de maio de 2008

Ibsen, a moral e a sífilis


- É de verdade Christiania uma cidade tão imoral assim? Não há nada que indique isso. As ruas são singularmente...
- É justamente devido a que as ruas estão tão imaculadamente limpas que os domicílios privados, os círculos familiares, são tão singularmente impuros. O ménage à trois floresce aqui como em nenhum outro lugar e, a maneira de ilustração da equiparação dos sexos, a terceira pessoa é, freqüentemente, uma mulher. As pessoas casam, divorciam-se, casam de novo e depois vira uma espécie de união livre com as esposas divorciadas. Desde a instauração das novas leis de divórcio na Noruega a situação é cómica, muito mais hilária que nada que jamais houvesse imaginado nenhum vaudevelliste francês.
- Imagino que desde a abolição do controle sanitário das mulheres pela parte do governo, a doença deve ter se espalhado muito por aqui.
- Certo. Fora Estocolmo, provavelmente há mais sífilis em Christiania em relação com a sua população do que em nenhuma outra cidade da Europa.

O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), em entrevista a R.H. Sherard, publicada na revista The Humanitarian em janeiro de 1897. Christiania é o antigo nome da cidade de Oslo.

Tradução de Juan Trasmonte
Foto de Edvard Munch (sim, ele mesmo)

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Disco rígido


Na minha retina
ambulância em preto e branco
caminho de pedras vermelhas
penalti chute gol
peito de pele branca
carne vermelha estourada
na linha do trem
fogo no baldio
Iguaçu
vento sul
estrada do Galeão
garganta do diabo
garganta de Dylan
céu de Cabo Polonio
Madres de la Plaza
anjos no metrô
raios e serpentes
fim de feira
aranha tece
ideograma
homo videns
na minha retina
esculpida
nublada blindada
desvairada
por beleza.

Disco rígido, de Juan Trasmonte (Creative Commons)

domingo, 11 de maio de 2008

Adriana na maré alta


A idéia que fica depois de assistir outro show de Adriana Calcanhotto é que a artista conserva o espírito livre, ainda fazendo parte do esquema da grande industria fonográfica. Ela parece não precisar de um novo disco, de um novo show, nem de correr pro violão procurando um acorde novo, nem nada que seja novidade, exceto o que a artista que nela está lhe-peça.
Pelo jeito, as gravadoras multinacionais no Brasil estão percebendo isso, depois que a maioria dos monstros sagrados da MPB migraram para a independênçia. Assim é melhor ter um disco da Adriana a cada quatro anos do que não ter Adriana.
O Maré começou sua vida pública ontem em Buenos Aires. A noite no teatro Gran Rex lotado foi outra certidão de que o público argentino é respeitoso, cálido e ruim de acompanhar o ritmo com as palmas. “Estamos muito felizes de estar aqui. Vocês podem pensar que eu sempre digo isso e eu digo mesmo, mas hoje é verdade”. Essa introdução e o agradecimento pelo fato de apresentar uma obra nova e ser “ouvida” foram as únicas lisonjas para o público, que depois do primeiro bis ficou chamando Adriana pro palco por quase dez minutos, mas ela não voltou.
Grandes paineis da cor azul do mar com estratégicos hipocampos e golfinhos deram o tom. O oceano da Adriana tem cor, espanto e gozo; a familiaridade carioca da presênça e certa surpresa de quem um dia foi pra beira do mar e nunca mais quis voltar para Porto Alegre.
Nessas ondas está citado com força explícita ou implícita Dorival Caymmi, está lembrado o saudoso Waly Salomão, mesmo que a menção do seu nome não seja significativa para o público porteño, como será nos muitos shows que virão no Brasil. Está lá também a demorada primeira parceria com Arnaldo Antunes, Para lá, já gravada por ele em Qualquer e que deixou o sabor de quero mais, de que bom seria um disco inteiro só deles dois.
E para se sentir bem na sua praia, Adriana está cercada por músicos pares: Marcelo Continentino, Rafael Rocha, o barba Bruno Medina do (ex?) Los Hermanos e o Domenico + ele mesmo, que já tem torcida própria em Buenos Aires.
De volta ao começo, Adriana não concede, dribla a demagogia de querer agradar o público, faz umas poucas daquelas que tudo mundo pede, alguma raridade como a versão voz e violão do megasucesso do Dúo Dinámico, Resistiré, e fecha o show com a música hermana Deixa o verão.
Tive o para mim privilégio de assistir shows emblemáticos de Adriana Calcanhotto. O primeiro que fez em Buenos Aires -circa 1995- no contexto de um festival e quando ninguém a conhecia por aqui; um outro no Rio que encerrou seu aclamado Público e esse primeiro de Maré são exemplos. A sensação que permanece é que no mundo da eterna novidade sem sentido, Adriana continua sustentando sua posição de artista. Não quer aparecer, não quer agradar; canta desde uma intimidade tocante ou desde um distanciamento notável. Sua concepção de show faz com que um movimento do braço pra jogar no chão a unha da guitarra seja tão relevante quanto o roteiro das músicas e a iluminação. Por isso quando Adriana canta continua sendo mais importante estar do que poder falar eu estive no dia seguinte.

Texto de Juan Trasmonte (Creative Commons)
Foto de Marcela Romanelli

sábado, 10 de maio de 2008

Os olhos de Berni


"O artista é obrigado a viver de olhos abertos"

Juanito dormido, pintura de Antonio Berni

sexta-feira, 9 de maio de 2008

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Fellini e la pazzia


A loucura exerce um grande fascínio. Ser médico num manicômio é como ser diretor de cinema. A gente atinge o poder e é acreditado pelas pessoas. Mas a atmosfera é muito ambígua. Igual acontece num set cinemtográfico, dentro do manicômio a gente se sente protegido, num certo sentido tolo, contra a lei. É feito o ventre materno. A loucura acrescenta um álibi: permete e protege. Você pode viver lá os sonhos mais fantásticos, lançar fantasmas legalmente aceitos, sem precisar de satisfações nem obrigações, protegido pela lei da loucura. Há uma grande liberdade. Você pode criar e viver um mundo totalmente seu, que é muito mais que tentador: é sedutor. Ver tantas pessoas nessa liberdade leva à gente ao delírio. A loucura vira contagiosa. Duas semanas depois eu mesmo fiquei louco. Me senti doente.
Desde Magliano trouxe um relato. Não era um roteiro. Era algo mais do que o livro de Tobino.
Achei que seria um filme muito meu porque eu poderia resumir todos os assuntos que me são caros e, num sensível retrato dessa realidade, incluir uma "transfiguração" que procurei com ânsia. Também poderia incluir um reflexo da ansiedade que segrega o castelo-asilo. O conjunto asumia um caráter extraordinário.
O filme nunca se fez, pelos motivos de sempre.
Não achei um produtor.
De Laurentiis me disse: "Você já fez um filme sobre homossexuais, I vitelloni. Fez um filme sobre vigaristas, Il bidone. Porque você não faz só para mudar um filme sobre gente normal?"
Em lugar de Le donne libre de Magliano fiz Le notti di Cabiria.

Esse depoimento maravilhoso do diretor Federico Fellini exibe um dos seus freqüentes desencontros com os produtores. Em 1955, Fellini estava fascinado com um livro chamado Le libre donne di Magliano, onde o psiquiatra e escritor Mario Tobino narrava suas experiências no hospital psiquiátrico de Magliano. O diretor estava impressionado pelo amor com que o médico retratou seus pacientes. Tanto que passou duas semanas de convívio com os malucos.
Seguindo certa lógica esse poderia ter sido um La dolce vita, posto que para esse grande clássico no começo Fellini também não tinha apoio nenhum. Mas não foi, embora a loucura continuo presente no resto da sua obra.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Jehro



I woke up this morning
Hunger was gnawing my soul
But the preacher man's sermon
Won't put no food in my bowl

Abidjan to Monrovia
Looking for food and a home
Instead I found factions and armies
In the middle of a combat zone

I want love, I need love
I want loveI want love,
I need love,
And a little food in my bowl

Here in this tribal warfare
For food you need money or a gun
I signed up - whose side I don't care
At least now I'm someone

At parade time the grown-ups are cruel
And all of the soldiers are small
Commanders and captains and colonels
All kids with their backs to the wall

I want love, I need love
I want loveI want love,
I need love,
And a little food in my bowl

They told me I'm joining a family
But here I ain't nobody's son
My brothers are right here beside me
We share our hunger and we share our gun

Tomorrow we start the offensive
Been drinking palm wine all day
Grigrimen can keep us from bullets
But hash won't keep hunger at bay

I want love, I need love
I want loveI want love,
I need love,
And a little food in my bowl

When it's time the small soldiers march forward
When one falls the next takes his gun
Four to one AK47
I was number three but now I'm gone

Our future is dying right here
Children only ten years old
In this tribal colonial nightmare
We're reaping the seeds you have sown
We're reaping the seeds you have sown

We want love, we need love
All of us want love
We want love, we need love
And a little food in my bowl

I want love, de Jake Bailey e Jehro

Nascido Jérôme Cotta, de padre francês e mãe mistura de grega com italiana com corsa, o cantor e compositor Jehro atravessou a poça d'água e foi parar em Hammersmith, o bairro de Londres que reune à boemia e os artistas. Aí aprendeu reggae do bom com os jamaicanos e ritmos do Caribe com os hispánicos. Esse seu último album, que leva seu nome, gravado em inglês e com duas músicas em espanhol, não tem um acorde nem uma vírgula a mais. Redondo em letra e música é daqueles poucos que ainda você coloca e ouve do começo ao fim, aqueles que ainda ressistem à ansiedade do pulo.

terça-feira, 6 de maio de 2008

Você é filho do Screamin' Jay?


I put a spell on you
Because you're mine
Stop the things you do
Hehehe (watch out!)
I ain't lyin'
I can't stand no
running around
I can't stand no putting me down
I put a spell on you
Because you're mine

Stop the things you do (watch out!)
I ain't lyin'
I love you I love you I love you
anyhow!
I don't care if you don't want me
I'm yours right now

I put a spell on you
Because you're mine.

I put a spell on you, de Screamin' Jay Hawkins
Foto de Michael Macioce

Todo mundo gravou, de Creedence a Nina Simone, de Brian Ferry a Marilyn Manson, mas a versão original da figuraça é imbatível. Tudo bem, não faz falta comparar, há muitas maravilhosas.
Era para ser uma balada, composta pelo novinho Screamin' a primeira vez que levou um chute de uma dama e o primeiro corte a ser gravado e nunca lançado foi assim mesmo. Mas, meses depois, em 1956, ele entrou de novo no estúdio para gravar essa versão definitiva, com tudo mundo da banda bêbado e o solo de sax inesquecível de Sam The Man Taylor. E na verdade começaram a tocar como uma balada, mas deu no que deu, com o homem aos gritos, fazendo jus ao apelido.
Screamin' Jay Hawkins morreu em 2000, deixou cinco ex viuvas oficiais e seis filhos registrados, mas conta a lenda que ele teve mais de cinqüenta.
Por sinal, se você achar que é filho do Screamin' pode esclarecer a sua dúvida
aqui.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Dar até doer



Dar até doer
eu queria
abrir rios de sangue
nas linhas da mão
beijar nas pálpebras
dos olhos cristalizados
pela fome
dar até doer
e continuar
a dar
mas eu não sou tão bom
e o grito da besta nunca para
e a besta nunca dorme

sob meus pés
as brasas de Vulcano
e vejo Atalantas
invictas na corrida
com seus véus ao vento
enlaçando meus joelhos
e caio

de novo
caio.

Dar até doer, de Juan Trasmonte (Creative Commons)
Reprodução da pintura de 1630, A forja de Vulcano (La fragua de Vulcano), de Diego Velázquez, que reproduz a cena em que o deus Apolo comunica ao deus Vulcano -representado por Velázquez como um homem comum- que sua esposa Venus o enganou com Marte.

domingo, 4 de maio de 2008

A fina malandragem de Ismael


Se eu precisar algum dia
De ir pro batente
Não sei o que será
Pois vivo na malandragem
E vida melhor não há
Minha malandragem é fina
Não desfazendo de ninguém
Deus é quem nos dá a sina
E o valor dá-se a quem tem
Também dou a minha bola
Golpe errado ainda não dei
Eu vou chamar Chico Viola
Que no samba ele é rei
Dá licença seu Mário

Oi, não há vida melhor
Que vida melhor não há
Deixa falar quem quiser
Deixa quem quiser falar
O trabalho não é bom
Ninguém pode duvidar

Oi, trabalhar só obrigado
Por gosto ninguém vai lá

O que será de mim, de Ismael Silva, Nilton Bastos e Francisco Alves
Foto de Clóvis Scarpino

Domingo, um dia antes de voltar pro batente, lembrei desse samba de Ismael, composto em 1931 -no mesmo ano em que ele lançou seu famoso Se você jurar- em parceria com Nilton Bastos e Francisco Alves. Boa oportunidade também para lembrar do Clóvis Scarpino, que tirou essa foto, grande bamba, fotógrafo e amigo de Ismael.

sábado, 3 de maio de 2008

Malik e Jaime nas alturas


O tour de apresentação do album Altiplano foi encerrado na quinta-feira em Buenos Aires. Vivemos momentos de muita emoção pela satisfação do dever cumprido. Não é simples fazer parte de um projeto que involucra Jaime Torres, o mestre do charango, um músico argentino de folclore; Magic Malik, um flautista de free jazz francês de origem africana e Minino Garay, um percussionista argentino radicado na França há duas décadas.
E a empresa foi gravar na França, fazer show em París, viajar todo mundo pra Argentina, fazer show em Buenos e mais seis cidades daqui e voltar a Buenos Aires pra fechar o show. Enquanto isso, o disco devia estar pronto e distribuído nas datas certas, na França e aqui.
Deu tudo certo mas, como essa foto que tirei desde o palco mostra, tudo volta ao começo: na gênese está o encontro humano em comunhão artística.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

La Raulito


Ni las inclemencias de la calle, ni los diferentes reformatorios, ni la impiedad de las cárceles pudieron cancelar el afán de libertad de María Esther Duffau, en adelante, La Raulito.
Empujada a la calle por la pérdida temprana de su padre y el irredento deseo de no someterse a las normas de la educación, La Raulito comprendió rápidamente que, para sobrevivir en ese medio hostil, era conveniente ser varón. Así fue como abandonó la pollerita tableada del primer hogar en que fue internada, se calzó los cortos y se lanzó a las calles de Buenos Aires como un pibe más.
“Eran otros tiempos”, recordaba La Raulito, “hoy te la dan para robarte las zapatillas”. Hablaba como si fuera presente de los códigos de la calle de la década del cuarenta del siglo pasado, los mismos que quizás le permitieron pasar inadvertida entre los muchachitos de su grupo, quienes la bautizaron primero como la Peladita, y luego con el nombre con el que la conocemos hasta hoy: La Raulito.
Se mantenía vendiendo diarios en el Centro y en Constitución -la sexta de Crónica y La Razón- haciendo eventuales changas y abriendo las puertas de los taxis. Las monedas recaudadas se trocaban por comida. Ocasionalmente trabajaba “en equipo” en los bares para hurtar un sandwich levantando la campana de vidrio, pero aseguraba que jamás robó nada para ella. A lo sumo “juguetes para los pibes, que me pedían: Raulito, mirá ese trompo, conseguímelo, dale”, confiaba, como una especie de Robin Hood de los márgenes.
Pudo seguir adelante con muy pocos recursos, pero quizás allí resida la razón por la que jamás pensó en tener una familia: “¿Estás loco? Cómo hacés para criar a un pibe en la calle? Porque yo si tenía un pibe lo quería tener bien, con la mejor ropa”.
Si nunca se dejó someter por la ley, La Raulito en cambio fue marcada por el estigma de la persecución y reiteradamente fue encerrada en reformatorios, comisarías y cárceles, al principio, y luego en instituciones neuropsiquiátricas. Siempre las faltas fueron menores que las condenas.
La vida de La Raulito estuvo, de esta manera, signada por la soledad y una pulsión de libertad intrínseca a su persona. La soledad de quien debe resolver lo urgente sin medias aguas, de quien no puede descargar las decisiones en otros ni puede hallar amparo en el otro. La libertad como utopía de un espacio transformador. Esa misma calle que la exponía a diferentes tipos de violencia, representaba el único lugar donde no la alcanzaba el sometimiento. “La gente tiene pajaritos enjaulados, pero si les abren la puerta se van a la mierda”.
Hasta el final fantaseaba con lo que nunca tuvo: un hogar propio. “Qué es un dos ambientes?”, preguntaba La Raulito, evidenciando que su conocimiento sobre viviendas se reducía a las inexistentes fronteras de la calle y a los jamás infranqueables paredones de los correccionales.
Y ante la posibilidad de tener un techo, el detalle de confort más importante para ella era “que tenga una ventana para mirar para afuera”, como vestigio de tantos atardeceres soñando fugas. “Para saltar un paredón hay que dejarse caer, como un peso muerto, y doblar las piernas, porque si caés con las piernas duras te rompés toda”.
Ante tanta reincidencia y tanto desapego a las ordenanzas, alguien decidió que los desarreglos de conducta de La Raulito eran indicativos de que no estaba en sus cabales, de manera que ordenó su internación en el neuropsiquiátrico de mujeres Braulio Moyano. Este es el capítulo más oscuro de su vida y a la vez uno de los más significativos para los observadores ajenos. Porque su internación derivó en un debate sobre las fronteras a menudo difusas entre lo que llamamos insanidad y el concepto de salud mental.
Cuando La Raulito se convirtió en una cierta celebridad marginal -merced a la película protagonizada por Marilina Ross- todavía tendría que enfrentar demasiadas tormentas.
En esos años también comenzó a aparecer públicamente como la más popular hincha de Boca, club en el que poseía una platea cautiva y donde se ganó el derecho a un rincón propio en la confitería, un espacio que guarda sus fotos junto a varias glorias deportivas del club. En los últimos tiempos, cuando adoptó el “look Palermo”, La Raulito firmaba autógrafos a simpatizantes y turistas como una celebridad más de la institución de la Ribera. Y utilizaba su popularidad para obtener pequeñas satisfacciones que antes eran impensadas: la camiseta de un ídolo, una invitación a almorzar. “Yo quiero ser una persona común, del pueblo”, decía.
Sin embargo, la mayoría de quienes se le acercaban a solicitar una firma o una foto conocían apenas su lado pintoresco, poco y nada sabían del carácter de su trayectoria.
En el Moyano, La Raulito conoció a “La Mami”, quien se convirtió en su compañera inseparable. “Yo la saqué del Moyano -decía La Raulito- cuando estaba casi muerta. Vos la ves así ahora, pero estaba consumida de cómo la cagaban a palos”.
“La Mami” aparecía alternativamente como una suerte de alter-ego de La Raulito. Ella y un perro callejero al que bautizó Pinky eran sus afectos más cercanos.
De sus años vividos en la calle, conservaba cierta desconfianza por los extraños, el lenguaje directo y procaz de los reformatorios y un vocabulario que permanentemente hacía referencias a personajes y situaciones de otras décadas. Charlando con ella aparecían El Mono Gatica, Olinda Bozán, El pibe Cabeza y Evita, entre otros íconos de la memoria colectiva porteña.
En ella permanecían trazos de su niñez, del anhelo por las pequeñas satisfacciones, cuando usaba el dinero de un medicamento para comprarse zapatillas nuevas, o cuando corría a un referí con la honda. Y también la impunidad de quien se sabe, en la recta final y con el crédito que dan los golpes asimilados. La Raulito estiraba los límites casi como un juego, porque sabía que ya no habría castigo, ya lo hubo por demás. “Portate bien, Raulito”, se repetía a sí misma como un latiguillo, la frase que tantas veces habrá escuchado de manera admonitoria. Cuando circulaba con visible dificultad motora por los pasillos crepusculares del Hogar Rawson resultaba difícil imaginar que aquella anciana era la misma que enfrentaba a policías y agentes del servicio penitenciario, aquella que como el mito de Proteo, cambió de apariencia para sobrevivir.

Foi a mais ilustre torcedora do Boca. Desde criança vestiu feito um garoto para sobreviver na rua. Passou por cárceres e pelas chamadas "instituições disciplinares". Ficou conhecida quando a sua história foi levada ao cinema. Mesmo assim, passou os seus últimos anos num lar público de idosos em Buenos Aires, onde os idosos são pouco menos que jogados à sua sorte.
Escrevi esse texto depois dos nossos primeiros encontros, em 2005, quando estávamos produzindo um documentário sobre a vida dela, dirigido por Emiliano Serra. A foto é dessa época. La Raulito faleceu na quarta-feira.

quinta-feira, 1 de maio de 2008

Miley segundo Annie


Nem toda a publicidade, nem as fotos privadas divulgadas na internet, nem um seriado de sucesso mundial no horário nobre do Disney Channel. Como testemunha Miley Cyrus, a tal Hannah Montana, na última edição da Vanity Fair, ninguém vira uma big star até ser olhada pela lente de Annie Leibovitz.

Foto do backstage da sessão de Annie Leibovitz