Acordei no meio de uma angústia danada. Eran nove horas e eu estava em casa. Fui pra sala e deparei-me com minha mãe, que já percebera que eu tinha acordado e vinha ao meu encontro.
- Mãe, você não me acordou!
- É que houve uma revolução -disse ela num tom que era de preocupação mas que ao mesmo tempo tinha a intenção de acalmar-me. Um contra senso improvável que só uma mãe consegue expressar-
Meu pai estava fazendo a barba e ouvindo o radinho de pilha ao mesmo tempo. Duas atividades que, juntas, não faziam parte da rotina dele. Meu pai tinha um passado de militância no sindicato dos atores, nos quadros do peronismo.
Depois de tomar o café da manhã, meus irmãos e eu fomos atraídos por um barulho que vinha da rua. Debruçados na janela, pasmos, entre a surpresa e o encantamento infantil, vimos os tanques passando na frente da minha casa.
- Mãe, deixa a gente descer...
Minha mãe trocou um olhar rápido com meu pai e acompanhou à gente até a porta do prédio da Avenida Santa Fe.
Meu irmão Jorge e eu conferimos as marcas no asfalto das esteiras de rodagem dos tanques de guerra. Elas ficaram como um desenho modernista de linhas da cor cinza no chão preto.
A gente morava no bairro de Palermo, que era e é cercado de batalhões militares, embora com o tempo, o declínio do militarismo e os anos do consumismo fizeram de um desses batalhões um enorme supermercado.
Depois de uma hora, Jorge e eu fomos para a pracinha onde jogávamos bola todos os dias que não tinhamos obrigações com a educação, essa instituição que comprometia nosso futuro de homens do Bem e que também acabara de ser lesada, embora a gente não sabia disso.
Com o passar do tempo, percebi que meus pais, mesmo iludindo as próprias incertezas, tinham feito o possível para não alterar o nosso cotidiano. Foi uma mensagem do tipo “a vida continua”.
Minha angústia estava explicada: eu apenas começara o Ensino Médio e ainda era responsável dos meus deveres de estudante. Já no ano seguinte descobri que era bem mais divertido matar aulas para ficar com minha namoradinha.
Logo nos dias seguintes, acordei para os tempos que chegavam. Nosso colégio tinha um histórico de lutas dos estudantes. O reitor foi demitido para deixar a cadeira para um outro, do estilo mão dura. Foi esse o primeiro toque. Como todo colegio é uma reprodução em miniatura de uma nação, crescendo também fui me dando conta que esse país jamais seria o mesmo.
O que minha mãe -acostumada com a quebra da ordem democrática que atravessou o século vinte- chamou de “revolução”, foi o início da ditadura mais sangrenta de que a Argentina tem memória.
Eu tinha treze anos naquela manhã do 24 de março de 1976. Fazem hoje 33 anos.
Foto de soldados custodiando a Casa Rosada, sede do governo argentino, na manhã de 24 de marzo de 1976, da Agência Telam, sem crédito do autor
- Mãe, você não me acordou!
- É que houve uma revolução -disse ela num tom que era de preocupação mas que ao mesmo tempo tinha a intenção de acalmar-me. Um contra senso improvável que só uma mãe consegue expressar-
Meu pai estava fazendo a barba e ouvindo o radinho de pilha ao mesmo tempo. Duas atividades que, juntas, não faziam parte da rotina dele. Meu pai tinha um passado de militância no sindicato dos atores, nos quadros do peronismo.
Depois de tomar o café da manhã, meus irmãos e eu fomos atraídos por um barulho que vinha da rua. Debruçados na janela, pasmos, entre a surpresa e o encantamento infantil, vimos os tanques passando na frente da minha casa.
- Mãe, deixa a gente descer...
Minha mãe trocou um olhar rápido com meu pai e acompanhou à gente até a porta do prédio da Avenida Santa Fe.
Meu irmão Jorge e eu conferimos as marcas no asfalto das esteiras de rodagem dos tanques de guerra. Elas ficaram como um desenho modernista de linhas da cor cinza no chão preto.
A gente morava no bairro de Palermo, que era e é cercado de batalhões militares, embora com o tempo, o declínio do militarismo e os anos do consumismo fizeram de um desses batalhões um enorme supermercado.
Depois de uma hora, Jorge e eu fomos para a pracinha onde jogávamos bola todos os dias que não tinhamos obrigações com a educação, essa instituição que comprometia nosso futuro de homens do Bem e que também acabara de ser lesada, embora a gente não sabia disso.
Com o passar do tempo, percebi que meus pais, mesmo iludindo as próprias incertezas, tinham feito o possível para não alterar o nosso cotidiano. Foi uma mensagem do tipo “a vida continua”.
Minha angústia estava explicada: eu apenas começara o Ensino Médio e ainda era responsável dos meus deveres de estudante. Já no ano seguinte descobri que era bem mais divertido matar aulas para ficar com minha namoradinha.
Logo nos dias seguintes, acordei para os tempos que chegavam. Nosso colégio tinha um histórico de lutas dos estudantes. O reitor foi demitido para deixar a cadeira para um outro, do estilo mão dura. Foi esse o primeiro toque. Como todo colegio é uma reprodução em miniatura de uma nação, crescendo também fui me dando conta que esse país jamais seria o mesmo.
O que minha mãe -acostumada com a quebra da ordem democrática que atravessou o século vinte- chamou de “revolução”, foi o início da ditadura mais sangrenta de que a Argentina tem memória.
Eu tinha treze anos naquela manhã do 24 de março de 1976. Fazem hoje 33 anos.
Foto de soldados custodiando a Casa Rosada, sede do governo argentino, na manhã de 24 de marzo de 1976, da Agência Telam, sem crédito do autor
6 comentários:
Juan:
Um ótimo depoimento. A certa altura, também vi as marcas dos tanques nas ruas, através da sua narração.
O primeiro dia que nunca deveria ter ocorrido.
Abraço do Oleari.
Ju, o de vcs tb foi num março, é? Nossa, áries definitivamente é feroz quando se trata de golpes militares.
Amore, vc caiu, mas eu já te levantei. Tás lá de volta com certeza no blogroll e se vc não fala, também não veria que tem mais uns dois links faltando. Culpa minha, não do Tico.
Obrigada pelo carinho, hermano. Vc sabe que tá aqui dentro.
Besos!
Belo, importante e emocionante texto. Você é... D+
Lindo, Juan. Li o comentário a Leticia, sobre áries e os golpes militares. Ares, o regente de àries, é o deus da guerra. A censura, sob qualquer de suas formas: de criações e de comportamento, é um dos meios mais violentos que existe: obrigar a pessoa a não pensar e a não se expressar.
Velhos tempos, rezemos que não voltem mais...
Beijos.
Amém, Dani. Nunca mais. Eu me arrepio quando escuto pessoas falando "dos tempos dos militares" em nome da "segurança".
Oi Juan!
Bom, primeiro tenho que dizer que achei muito bonito seu relato. Muito legal conhecer um pouquinho da sua história. ;)
O episódio em si é triste e sinto muito que tenha passado por isso. Não acho que seja fácil pra ninguém, ainda mais para uma criança. Enfim...
Quero falar de outra coisa!
A Letícia é um amor mesmo né? Olha só, a culpa não foi dela não. Eu é que me confundi na hora de trocar os templates porque o seu link estava em outro lugar que não no blogroll e acabei me esquecendo depois. ;)
Peço desculpas e agradeço nossa amiga aí pela cobertura, mas a verdade é essa: Sou culpado! :D
Grande abraço!
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