domingo, 15 de março de 2009

Tenório Jr, o piano silenciado



Bem antes de ter o desejo que motorizou o Samba no pé, meu primeiro projeto de documentário relacionado com o Brasil e sua música, foi a trágica história de Francisco Tenório Cerqueira Junior, o Tenório Jr, o grande pianista seqüestrado e desaparecido na conturbada Buenos Aires de 1976.
Quando tive as primeiras notícias sobre o desaparecimento de Tenório e as suas circunstâncias, o primeiro que chamou minha atenção foi como eu, que na época já tinha interesse na cultura do Brasil, não havia conhecido esse fato através de alguma fonte brasileira. Afinal, Tenorinho não só era um cidadão brasileiro desaparecido na Argentina mas um músico que tinha viajado acompanhando ninguém menos que Vinicius de Moraes. Mas os brasileiros que eu consultei nem sabiam da tragédia ou meramente tinham “ouvido falar”. Tenório Jr. desapareceu duas vezes, a primeira nas mãos dos seus algozes e a segunda no silêncio do Brasil.
A estrutura do aparelho da repressão na Argentina já estava montada em 1976, na madrugada de 18 de março, seis dias antes da destituição de Isabel Perón pela Junta Militar.
Vinicius de Moraes já era uma figura muito popular e querida na Argentina. Ele tinha começado a excursionar por aqui no final da década de sessenta, junto com Toquinho, Maria Creuza e uma jovem e promissória cantora: Maria Bethânia. Aqui gravaram o hoje cultuado disco La Fusa, que ainda é na Argentina o disco de música brasileira mais vendido. Na época, Vinicius tinha um relacionamento com a argentina Marta Santamaría e muitos amigos, entre os músicos e atores daqui.
Nessa noite, depois do show no teatro Gran Rex, Tenorinho voltou pro hotel Normandie, na rua Rodríguez Peña. Ele marcara um encontro com dois amigos argentinos às duas horas da madrugada. As testemunhas dizem que pouco antes disso, ele deixou um bilhete colado na porta de um dos quartos, anunciando que ia dar uma saída para comprar um sanduíche ou cigarros (as testemunhas diferem) e um remédio. Anos depois, o dono de uma loja de conveniência da Rodríguez Peña com Corrientes, disse lembrar de uma pessoa estrangeira que comprou cigarros e entrou num Ford Falcon verde. Esses eram os carros que usavam os chamados Grupos de tareas, militares e paramilitares que realizavam os operativos e seqüestros.
Tenório foi levado para uma delegacia da área e depois para a ESMA, a temível Escuela de Mecánica de la Armada, que funcionou como um dos campos de concentração onde aconteceram os crimes mais horrorosos.
Vinicius e o resto dos brasileiros foram do desconcerto ao desespero. O passado de diplomata do Poetinha lhe deu uma certa possibilidade de acesso às informações. Mas ninguém sabia de nada. O poeta Ferreira Gullar, que atravessava os anos do seu exílio portenho, também se interessou pelo destino de Tenório Jr. Nada.
Vinicius chegou a dar uma entrevista para a televisão onde o seu rosto aflito denunciava o que estava acontecendo, e inclusive chegou a falar de Tenório na entrevista, que depois não foi emitida.
Os músicos voltaram para o Brasil e começaram a se mexer para conseguir informações. Vinicius entrou com pedido de habeas corpus e rapidamente distribuiu um abaixo-assinado que foi entregue às autoridades. Mas o governo continuou a repetir que nada sabia e o Itamaraty só manifestou que “envidava esforços” para achar o pianista.
Em 1979, em entrevista à Folha de São Paulo, Elis Regina declarou, pouco antes de uma viagem a Buenos Aires:

- Vou fazer um giro pela Argentina que tem não só, pra mim, a finalidade de ir até a Argentina pra fazer um negócio que estão me pedindo já há algum tempo, mas, principalmente, ver se eu agito o lance do Tenório Júnior com o pessoal de lá que sabe onde ele está.

Na verdade Elis, que foi uma das pessoas que mais agitou mesmo para obter informações, se baseou na declaração de um compositor argentino que disse a ela ter visto o Tenório numa prisão na cidade de La Plata.
Por esses tempos, um jornalista -cujo nome desconheço- também andou por Buenos Aires atrás de notícias. Mas as pesquisas batiam com o silêncio oficial.

- Olha, essa pessoa não está viva nem desaparecida, e me disseram que é melhor o senhor deixar de perguntar e voltar para o Brasil.

Só em 1986 saiu à luz outra versão. Um argentino de sobrenome Vallejos foi ao Rio de Janeiro com uma série de dossiers sobre brasileiros desaparecidos na Argentina (seriam sete segundo constam nos arquivos do Brasil) para vender à imprensa. O tal Vallejos teria feito parte do grupo que seqüestrou Tenório Jr. Ele mostrou documentos em que constaria que o Capitão Acosta, célebre torturador da ESMA atualmente preso, entrou em contato com o SNI para requerir informações sobre o cidadadão brasileiro Francisco Tenório Jr.
Outro ofício, datado em 25 de março, uma semana depois do desaparecimento diz, com um cinismo estarrecedor

1) Lamentamos informar a essa representação diplomática o falecimento do cidadão brasileiro Francisco Tenório Júnior, Passaporte n° 197803, de 35 anos, músico de profissão, residente na cidade do Rio de Janeiro.

Mesmo havendo recebido esse ofício, o governo brasileiro não tomou nenhuma iniciativa para recuperar o corpo de Tenório e nem sequer comunicar à família os acontecimentos.
Na época ainda não estava “oficializado” o Plano Cóndor, mas já existia a colaboração e a troca de informações entre as ditaduras da América Latina.
Em 2006, o Estado brasileiro reconhece ter “feito pouco” para dar com o paradeiro de Tenório Jr e o juíz Alfredo França Neto dita sentença de idenização à mulher -que nem status de viúva tinha- e os filhos, por danos morais e materiais. Na sentença, França Neto diz:

“No caso concreto, a violação à dignidade da pessoa humana ocorre no momento em que o Estado não protege, como deve, os seus nacionais, e não atua eficientemente, quando menos, na busca das informações sobre o paradeiro e o destino de Tenório Júnior, e deixa sem qualquer notícia a sua família, ao longo de mais de vinte anos...”

O que parece chegar mais perto da realidade é que Tenorinho foi levado pelo fato de ser um cabeludo de barba que andava na madrugada pela rua, o que já era motivo suficiente para ser detido nos anos de chumbo. Ou que ele foi confundido com mais alguém -o que também acontecia freqüentemente- e depois de ser torturado e sem nenhuma referéncia, virou mais um caso de “queima de arquivo”.
Por acaso estava eu nas filmagens do Samba no pé quando li uma entrevista com o diretor espanhol Fernando Trueba em que ele anunciava o projeto de um documentário sobre Tenório Jr. Deixou então de ser para mim uma possibilidade de filme, mas continuou sendo uma história que sempre me comoveu.
Tenório Jr. era um grande pianista de jazz, dos que experimentaram com samba-jazz e desaguaram na bossa nova. Seu disco de 64, Embalo, é uma referéncia.
Sua tragédia, um absurdo que retrata o lado mais cruel da nossa história.



Foto de Tenório Jr. sem crédito do autor
Reprodução da capa do disco Embalo

16 comentários:

Anônimo disse...

Juan, sempre grata por seus excelentes textos que me emocionam e ensinam.
Beijos de Maria

Roberta Mattoso disse...

Olá, quanto tempo!!
Nossa, eu não conhecia nada sobre Tenório Jr. e a partir do teu texto irei dar uma fuçada sobre a sua obra...
Impressionante como sempre saio daqui sabendo um pouquinho mais sobre a cultura de uma maneira geral.
Ótima semana pra vc, viu!?
Bjokas, Beta.

Anônimo disse...

"Lembranças

Composição: Toquinho / Mutinho

Um carro vai pela rua,
Os barcos voltam pro cais.
Meu pensamento flutua,
Brincando, perdido em lembranças banais.

A vida pára na esquina
Obedecendo aos sinais.
O vento embala o destino,
O sol aquece o menino e a menina,
A noite abraça os casais.

Pedro seguiu seu caminho,
Chico pediu pra ficar.
Tenório saiu sozinho na noite:
Sumiu, ninguém soube explicar.

Outros amigos se foram
Guardando seus ideais
Entre verdade e delírio.
Uns semearam saudade no exílio,
Outros não voltam jamais."

Alguns sobreviveram e sobrevivem com as marcas que jamais serão apagadas.
Não li seu texto amigo mas postei. Ando "escrava da alegria" e essa história mexe lá no fundo.
Beijos grandes e bela lembrança!

Don Oleari disse...

Juan:

Que trabalho ducacete esse seu, resgatando a memória de Tenório Jr.
Vou aproveitar a excelente oportunidade criada por você pra rever e reouvir alguma coisa dele.

Dubarai.
Em tempo: linkei seu blog no meu na coluna dos bloguis dusbão/atualizados. Bati o zoio em cima gurinhamemu e vim pra cá pra conferir.
Abração emocionado do Oleari, brasilerim da silva...

Don Oleari disse...

Em tempo dois: fui pro rango, voltei pra dizer que fiz uma chamada pro material excelente do seu blog.
Abraço do Oleari.

Livro de Autor disse...

Primeiro: que foto incrível!
Depois: não conhecia o Tenório Jr., não sabia da história dele.
Vou tratar de saber mais. Se puder, ouvir.
beijo.

Juan Trasmonte disse...

Agradeço a todos a mensagens e o carinho. Faz bem. A verdade é que deu muito trabalho colher as informações, pesquisar nos meus arquivos e escrever isso.
Mas eu precisava, essas histórias merecem ser divulgadas.
Agradeço a força ao companheiro Don Oleari -que tem um blog ótimo, diga-se de passagem- e o achado da querida Tia Bia dessa música de Toquinho que cita Tenorinho.
Agradeço aqui também ao grande músico Kiko Continentino, que postou esse texto na comunidade do orkut Bossa Nova.
Abraços a todos

Janaina Amado disse...

Juan, só agora li este seu post. Não conhecia a história de Tenório Jr., obrigada por me transmiti-la. Também acho da maior importância resgatar histórias assim. Você ainda tem vontade de fazer o documentário?

Edu O. disse...

Como Maria disse, é muito bom entrar aqui e aprender, além de ser uma leitura muito boa.

Fico com um sentimento enorme de tristeza. De certa forma esse esquecimento por parte do Governo continua. Somos jogados a sorte!

lafayette hohagen disse...

Sempre quis saber a verdade sobre o sumiço do Tenório.
Fiquei chocado ,por ter conhecido Tenório. Sujeito tranquilo,vegetariano,de bem com a vida.
Em 68 esteve em São Paulo junto com Carmem ,sua esposa e Elisa sua filhinha recém nascida. Foram meus hospedes. Fariamos um show na choperia Urso Branco. Estava formando uma banda para esse show ,que afinal não saiu.
Tenho até hoje uma carta datada de 14 de janeiro de 1969, onde relata as dificuldades pelas quais passava na época.Estava fazendo gravações com a "chamada turma da pilantragem", o que não o satisfazia,pois achava esse estilo" destituído de qualquer valôr artístico".
Parabéns por seu trabalho e espero que faça o documentário a respeito de nosso Tenório Jr.

Juan Trasmonte disse...

Muito obrigado Lafa! Entre a tua mensagem e o e-mail de Luciana de Moraes, além das mensagens dos amigos que acompanham o blog, me sinto feliz de ajudar a espalhar essa história, que está sendo enriquecida com os dados que vocês aportam.
Quanto ao documentário, espero que o Trueba complete o dele. Ele já gravou 150 horas. Imagino que será o legado definitivo.
Abração

Iêda disse...

Juan,

Obrigada por me apresentar o Tenório. Não conhecia sua história. A partir de seu excelente texto e pesquisa, e dos comentários dos compañeros, vou procurar conhecer mais sobre ele.

Abraços,
Iêda

jose borges disse...

Uma gratidão muito grande ver esse blog contando um pouco a historia do avô de minhas filhas parabéns pela iniciativa...

Juan Trasmonte disse...

José, eu só tenho a agradecer pela sua mensagem comovente. Como disse, espero que esse texto continue servindo para o conhecimento de Tenório por mais pessoas. Ele merece.
Muito obrigado

Unknown disse...

Quando assistí ao filme "Os desafinados", fiquei com a sensação de que o final do personagem pianista me era familiar...Espero que tenha sido um mote para que as pessoas não esqueçam Tenório.Parabéns pela pesquisa e pelo resgate do assunto.

Eliane Gonzaga (cantora).

Anônimo disse...

Parabéns pela postagem. Gostei de conhecer mais sobre Tenório Jr. Conheci a história dele através de um happening realizado pelo fotógrafo argentino Marcelo Brodsky no Mausoléu Castelo Branco em Fortaleza,uma vez que na ocasião tocava músicas do Tenorinho. E cheguei até aqui procurando saber se o desfecho de morte na Argentina do personagem interpretado por Rodrigo Santoro no filme "Os desafinados" seria uma forma de lembrar/homenagear o músico, pois parece muito. Abraço! Alice