quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Mestras de música



Tive três mestras de música. Nas dúvidas de língua estrangeira que me assaltam o tempo todo penso que talvez deveria começar assim: “Eu tive três mestras...”, mas detesto começar um texto com a palavra “eu”, então saiba o leitor iludir essa ausência de pronome.
Enfim, tive três mestras de música. A primeira foi Sara Bonino, que dirigia o coro da escola onde eu fiz o ensino fundamental. Sempre séria e com um batom vermelho furioso ela me mostrou muito cedo que músicas boas podem vir de qualquer canto do planeta.
Com minha emissão já grave aos onze anos, eu fazia parte da terceira voz do coro que cantava nos atos músicas do Guastavino, do folclore armenio, da tradição francesa e muitas outras.
A professora Sara me ensinou essa cara de bobo que a gente precisa fazer para relaxar o queixo, esse sorriso falso para sustentar as notas em i. Ela detestava que eu e outros fizéssemos parte do time de futebol da escola. Ela detestava futebol que, na época, todos nós achávamos muito mais interessante que ensaio de coro. Porém, no dia da decisão do tornéio inter escolar, a professora Sara nos-levou para a sala de música, nos fez deitar no chão e começou a tocar melodias suaves no piano pra gente relaxar. Foi um dos gestos de generosidade mais bonitos que eu recebi na minha vida.
A segunda dessas três mestras foi Virgínia Lee, que foi minha professora de violão na Fundação do Centro de Estudos Brasileiros em Buenos Aires, quando eu, já com vinte e cinco anos, ressolvi que tava na hora de deixar de adiar esse aprendizado.
A professora Virgínia me levou pela extensão rítmica brasileira com precisão e alegria. Descobri com ela que alegria é fundamental pra encarar qualquer aprendizado. Sempre lembro a bronca que ela deu em mim quando soube que eu era canhoto: “Você está fazendo um duplo esforço, um para aprender e outro para aprender feito destro”.
E a Virgínia -que ainda tenho o enorme prazer de encontrar de vez em quando- também me ajudou para achar os caminhos que me levaram alguns anos depois a virar um modesto “brasilianista” e a derrubar preconceitos sobre músicas que eu tinha como bregas. Mas a especialista nesse quesito foi a minha terceira mestra: Maria Bethânia.
Na verdade, o trabalho de Bethânia começou a obrar em mim bem antes, no ano 1980, quando eu voltei da minha primeira viagem ao Rio de Janeiro com, entre outros, o vinil do disco Mel. Por esse disco conheci Waly Salomão -embora eu já conhecia pelo Transa do Caetano e não sabia- e também Lupicínio Rodrigues . A Maricotinha me apresentou Rosinha de Valença e Sueli Costa; me fez interessar pelas raízes, procurar compositores que -na época em que não havia internet ainda- nem sempre foi fácil achar desde Buenos Aires.
Foi através dela que compreendi porque chamamos de Rei quem chamamos de Rei, que me aventurei pelas espessuras do mato, que soube que todo mar tem um rio. É por ela que ainda hoje descubro músicos talentosíssimos como Roque Ferreira. É por ela que aprendi que o palco é um espaço sagrado.
Sem essas três professoras eu não poderia ter feito um documentário sobre samba do qual respeitosamente me orgulho; talvez não teria ido nunca morar no Brasil; talvez não poderia trabalhar como produtor cultural com música brasileira nem ser chamado para escrever ou organizar coleções de música. Sem elas com certeza não teria virado uma “palavra autorizada” na matéria e minha conceição da música seria bem menos ampla.Por tudo isso, meu agradecimento por elas será eterno.

Texto de Juan Trasmonte (Creative Commons)

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