domingo, 21 de setembro de 2008

Quero ver Irene rir


Família Veloso. Irene ri.


Caetano Veloso no exílio em Londres


Já tenho escrito que a música Maria Bethânia foi uma das primeiras que despertou minha atração por música brasileira, fora as músicas de Roberto Carlos que eu ouvia em espanhol sendo criança.
Com curiosidade adolescente fui atrás do autor daquela música e assim descobri Caetano Veloso. Na minha primeira viagem ao Brasil, com dezessete anos, trouxe vários vinis, entre eles, aquele que foi o segundo da carreira solo dele, que chamou minha atenção pela capa branca com a assinatura no meio. Pouco sabia então da biografia do artista. Nas primeiras matérias que eu li, alguma falava sobre a viagem dele com Gil para São Paulo com o objetivo de desenvolver a carreira e dos momentos dificis que todo natural de uma cidade pequena tem que atravessar quando vira um migrante.
Quando ouvi Irene pela primeira vez achei natural que fosse, entre guitarras distorcidas que já nos oitenta soavam pitorescas, uma música de saudade do jovem baiano que sentia falta dos seus afetos. Eu não fazia a menor idéia de quem era a Irene da música. No progressivo aumento do meu interesse pela obra de Caetano, soube que Irene era uma das irmãs dele. Pouco tempo depois, num especial da televisão brasileira -daqueles que os meus amigos gravavam com generosidade pra mim quando o acesso à informação era menos democrático e simples- eu soube que a música tinha sido criada pelo artista na cadeia, porque o sorriso de Irene, aberto e sonoro, era o completo oposto daquela realidade.
Fiquei comovido com a história e a beleza da metáfora. Lembrei imediatamente do grande poeta espanhol Miguel Hernández, que escreveu vários dos seus mais estarrecedoramente belos poemas nas prisões da Guerra Civil Espanhola. Mas mesmo ignorando os motivos que levaram Caetano a compor a música, eu já gostava muito dela, da musicalidade rítmica do verso “quero ver Irene rir” e do contraste das guitarras elétricas e o andamento com o que as palavras significavam. Para um adolescente de Buenos Aires, criado na ditadura e na cultura do tango, resultava muito curioso como na música brasileira, letras tristes eram freqüentemente expressadas com músicas que sugeriam o contrário. Com o tempo cheguei a fazer programas de rádio inteiros acentuando essa particularidade, em comparação com a música argentina.
No seu livro Verdade Tropical, Caetano refere assim o acontecimento:
Irene tinha catorze anos então e estava se tornando tão bonita que eu por vezes mencionava Ava Gardner para comentar sua beleza. Mais adorável ainda do que sua beleza era sua alegria, sempre muito carnal e terrena, a toda hora explodindo em gargalhadas sinceras e espontâneas. Mesmo sem violão, inventei uma cantiga evocando-a, que passei a repetir como uma regra: Eu quero ir minha gente/ Eu não sou daqui/ Eu não tenho nada/ Quero ver Irene rir/ Quero ver Irene dar sua risada/ Irene ri, Irene ri, Irene... Foi a única canção que compus na cadeia. (...)
Quando comecei a arranhar as cordas do violão, já com vinte e cinco anos, um dia me surpreendi cantando Irene num ritmo bem mais lento e o círculo fechou, pois senti na própria carne a profundidade da tristeza daquela música.
Eu já tinha conversado com Caetano, em entrevista em Buenos Aires no começo da década de noventa, sobre a tristeza desses anos. Agora, através do encontro humanamente virtual com a arte e a pessoa de Maria Sampaio, achei entre os seus links o Blog de Irene Velloso, precisamente chamado Irene ri, com o palíndromo que descobriu o grande Augusto de Campos. E lá está ela, com seu sorriso, que jamais testemunhei ao vivo, mas que imagino do jeito que o artista o descreveu, no antagonismo da opressão, como uma vitória da liberdade.

Foto da família Veloso de Maria Sampaio
Fragmento do livro Verdade Tropical, de Caetano Veloso (Companhia das Letras, 1997)
Reprodução da capa do disco Caetano Veloso, de 1969
Foto de 1969 de Caetano Veloso no exílio em Londres, de autor não indicado

3 comentários:

Anônimo disse...

"Alô, alô Realengo!"

Bia Alves.

Anônimo disse...

Juan, sempre me emociona ler textos tão bonitos sobre os Velloso.
E você, essemenino... em que baús encontra "minhas" fotos?
Dia 30 haverá lançamento aqui na Bahia do livro de Mabel Velloso "Sal é um dom, receitas de mãe Canô" com fotos de minha autoria. Beijos de Maria

Janaina Amado disse...

Juan, esse seu texto tá lindo -- e eu, que não sou tão próxima à música, aprendi um bocado de coisas interessantes com ele. Parabéns.