Na entrevista em que apresentou seu último filme, Los abrazos rotos, o cineasta espanhol Pedro Almodóvar contou que o roteiro do filme foi escrito no meio de migranhas ferozes. Eu fiquei maravilhado, de novo, com o milagre da criação. Lembrei de Frida Kahlo, prostrada na cama depois que o acidente quebrou a coluna dela, pintando essas obras maravilhosas. Isso é tirar leite das pedras mesmo.
Poucas semanas depois, comecei a acordar no meio da noite por causa de uma dor no olho, como se alguém estivesse puxando dele para atrás com uma pinça. Eu padezi essas migranhas por ciclos, de cinco em cinco anos mais ou menos, sempre por questões relacionadas com a visão. A primeira vez foi quando descobri que precisava usar óculos; a segunda, quando os óculos ficaram velhos.
Lembro da última porque foi em 2001, na época em que morava no Rio.
Enfim, o caminho natural foi consultar meu oftalmologista que eu não via por mais de uma década.
Mas oftalmologista, igual que clínico e dentista eu acho que não é médico pra escolher de uma lista. São, na minha concepção integrista, que nem o amor, se for possível, eles têm que ser pra vida inteira.
Cheguei lá e encontrei a figura. Filho e neto de oculistas, membro conspícuo do Conselho de Oftalmologia. Magro, com essa barba de filósofo dos anos setenta, Rafael é do estilo menos é mais. Quando fui pedir mais aumento nos óculos, ele quis tirar; mandou eu ficar longe de todo tipo de telas e comer pouco nas épocas de muito trabalho.
Outra vez que uma conjuntivite estava me apurrinhando (e eu que não ia com ele porque não estava no meu serviço médico) e me mandou parar com todos os colírios e fazer uma solução com água e xampu Johnson pra crianças e passar nos cílios. Sarei depois de um mês de enfiar laboratórios inteiros nos olhos.
Dessa vez ele checou os meus óculos, olho fundo no fundo dos meus olhos, tomou a pressão deles e disse:
- Sua visão está melhor do que a última vez que eu te vi. Sim, você desenvolveu um pouco de astigmatismo, mas reduziu a miopia. Acontece com os anos. Não é por aqui. Você está bem do fígado?
- Acho que estou.
- Essas migranhas são típicas de pessoas que estão muito tempo sentadas. Quando você levanta da cama, passa, certo?
- Depois de um tempo, passa.
- Então... você não é que fazia Tai Chi Chuan?
- Iiiih, Rafael, há muito tempo que parei.
- Talvez seria bom voltar. Senão faça ioga. Vou te mostrar umas asanas, que são fáceis.
Ato seguido, Rafael deitou no chão do consultório e com os braços esticados e as palmas pro chão levantou as pernas e levou as por cima da cabeça.
- Andar também é muito bom. No sábado passado, minha mulher e eu andamos cinco horas.
Eu saí de lá aliviado por não ter nenhum tubarão mordendo meu olho, mas já cansado de pensar o que seria de mim saindo pra andar cinco horas.
Resolvi voltar pro Tai Chi, que já estava dando voltas na minha cabeça. E estou fazendo o esforço intelectual para começar essa semana, enquanto reservo uma sessão com minha fisioterapeuta, que é uma garota filha de japoneses que mistura as técnicas ocidentais com as orientais.
Mesmo assim, no percurso dessas novas decisões, está custando dormir a noite toda sem uma dose de ergotamina.
E como uma das minhas reclamações na frente do espelho estava sendo a falta de tempo pra escrever, decidi dar uma de Almodóvar. Claro, longe de pretender chegar na altura da unha do pé dele. Mas quando a dor me acorda, encaro o caderninho e maltrato versos. Série que já dei em chamar “Poemas da migranha”.
Ando perambulo ambulo devaneio
nas sombras da casa
feito uma criatura
dos pesadelos de Almodóvar
bêbado dos licores do aquecedor
ando feito pagador
carregando o andor
arrancado do reino
dos sonhos sem dor
feito zumbi de George Romero
zumbi de Cannes sem palmarês
do sonho mor de ser
no útero
ao chão de papelão
amanhecer sem cobertor
no escuro menos cúmprice
puxado pelo olho
que me expõe
jogado no mistério
dessa dor.
Migranha (I), de Juan Trasmonte (Creative Commons)
Foto de Pedro Almodóvar de Ruven Afanador
Poucas semanas depois, comecei a acordar no meio da noite por causa de uma dor no olho, como se alguém estivesse puxando dele para atrás com uma pinça. Eu padezi essas migranhas por ciclos, de cinco em cinco anos mais ou menos, sempre por questões relacionadas com a visão. A primeira vez foi quando descobri que precisava usar óculos; a segunda, quando os óculos ficaram velhos.
Lembro da última porque foi em 2001, na época em que morava no Rio.
Enfim, o caminho natural foi consultar meu oftalmologista que eu não via por mais de uma década.
Mas oftalmologista, igual que clínico e dentista eu acho que não é médico pra escolher de uma lista. São, na minha concepção integrista, que nem o amor, se for possível, eles têm que ser pra vida inteira.
Cheguei lá e encontrei a figura. Filho e neto de oculistas, membro conspícuo do Conselho de Oftalmologia. Magro, com essa barba de filósofo dos anos setenta, Rafael é do estilo menos é mais. Quando fui pedir mais aumento nos óculos, ele quis tirar; mandou eu ficar longe de todo tipo de telas e comer pouco nas épocas de muito trabalho.
Outra vez que uma conjuntivite estava me apurrinhando (e eu que não ia com ele porque não estava no meu serviço médico) e me mandou parar com todos os colírios e fazer uma solução com água e xampu Johnson pra crianças e passar nos cílios. Sarei depois de um mês de enfiar laboratórios inteiros nos olhos.
Dessa vez ele checou os meus óculos, olho fundo no fundo dos meus olhos, tomou a pressão deles e disse:
- Sua visão está melhor do que a última vez que eu te vi. Sim, você desenvolveu um pouco de astigmatismo, mas reduziu a miopia. Acontece com os anos. Não é por aqui. Você está bem do fígado?
- Acho que estou.
- Essas migranhas são típicas de pessoas que estão muito tempo sentadas. Quando você levanta da cama, passa, certo?
- Depois de um tempo, passa.
- Então... você não é que fazia Tai Chi Chuan?
- Iiiih, Rafael, há muito tempo que parei.
- Talvez seria bom voltar. Senão faça ioga. Vou te mostrar umas asanas, que são fáceis.
Ato seguido, Rafael deitou no chão do consultório e com os braços esticados e as palmas pro chão levantou as pernas e levou as por cima da cabeça.
- Andar também é muito bom. No sábado passado, minha mulher e eu andamos cinco horas.
Eu saí de lá aliviado por não ter nenhum tubarão mordendo meu olho, mas já cansado de pensar o que seria de mim saindo pra andar cinco horas.
Resolvi voltar pro Tai Chi, que já estava dando voltas na minha cabeça. E estou fazendo o esforço intelectual para começar essa semana, enquanto reservo uma sessão com minha fisioterapeuta, que é uma garota filha de japoneses que mistura as técnicas ocidentais com as orientais.
Mesmo assim, no percurso dessas novas decisões, está custando dormir a noite toda sem uma dose de ergotamina.
E como uma das minhas reclamações na frente do espelho estava sendo a falta de tempo pra escrever, decidi dar uma de Almodóvar. Claro, longe de pretender chegar na altura da unha do pé dele. Mas quando a dor me acorda, encaro o caderninho e maltrato versos. Série que já dei em chamar “Poemas da migranha”.
Ando perambulo ambulo devaneio
nas sombras da casa
feito uma criatura
dos pesadelos de Almodóvar
bêbado dos licores do aquecedor
ando feito pagador
carregando o andor
arrancado do reino
dos sonhos sem dor
feito zumbi de George Romero
zumbi de Cannes sem palmarês
do sonho mor de ser
no útero
ao chão de papelão
amanhecer sem cobertor
no escuro menos cúmprice
puxado pelo olho
que me expõe
jogado no mistério
dessa dor.
Migranha (I), de Juan Trasmonte (Creative Commons)
Foto de Pedro Almodóvar de Ruven Afanador
2 comentários:
belíssimas a história e a poesia. senti firmeza neste médico!
Juan, vamos de caminhada...
Beijos
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