Sempre gostei de olhar pelas janelas. Desde criança tive essa inclinação para a vida contemplativa.
Quando morava no Rio de Janeiro, estava num fim de tarde de domingo olhando pela minha janela de fundos do apartamento no Flamengo. Andava perdido nas luzes que vinham do Morro Azul quando vi por um recorte de uma janela de um prédio lateral, as pernas de um homem e uma mulher dançando tango.
A perspectiva, eu num andar superior, eles num andar inferior, só me deixava ver desde a metade das coxas deles para abaixo.
Pelas roupas e o que parecia, não eram pessoas jovens. Eles passavam na frente da minha visão e sumiam do marco da janela. Depois passavam para o outro lado, na cadência inconfundível do tango.
Alguma coisa mexeu no meu interior. Nesse momento compreendi a profundeza da minha parte argentina, ao sentir uma identificação indescritível, viscerosa, que aconteceu só pelo fato de ver essa imagem fragmentada, sem som, sem rostos, mas que tinha uma direção só: era tango. E o tango é Argentina, e mais que Argentina, é Buenos Aires.
Isso vivia em mim por relação assim como vivia o samba por adopção. Isso me levou à cidade onde eu tinha nascido, que estava longe, e da qual, na minha “brasileirice”, achava não sentir falta, além da saudade das pessoas queridas.
Por estes dias lembrei daquela imagem. O programa de rádio que estou fazendo, Club Brasil, já tem em duas emissões, vários ouvintes brasileiros radicados na Argentina. Parece que correu a voz e que a divulgação feita na unha chegou também à crescente comunidade de brasileiros que aqui vieram atrás de um amor, por compromissos de trabalho ou para se procurar a vida.
Quando eu programo a música penso nos muitos argentinos que gostam de música brasileira e que não tinham um espaço semelhante na rádio daqui. Mas também penso nesses brasileiros e coloco, quase como uma guinada, algumas músicas que sei que fazem parte do imaginário coletivo deles.
Tenho recebido e-mails comoventes para mim. Queria que eles sentissem pelo menos uma vez o que eu senti naquela tarde olhando pela janela. Talvez essa identificação, por longínqua que seja, os possa deixar mais leves para ir embora, para ficar, para andar pelo mundo soltos. Humanos.
Chegou a hora, chegou chegou
Meu corpo treme e ginga qual pandeiro
A hora é boa e o samba começou
E fêz convite ao tango pra parceiro.
Chegou a hora, chegou chegou
Meu corpo treme e ginga qual pandeiro
A hora é boa e o samba começou
E fêz convite ao tango pra parceiro.
"Hombre yo no sé porque te quiero
Yo te tengo amor sincero
diz a muchacha do Prata
Pero no Brasil é diferente
yo te quiero simplesmente
Teu amor me desacata.
Habla castellano num fandango
Argentino canta tango
ora lento, ora ligeiro
Pois eu canto e danço sempre que possa
Um sambinha cheio de bossa
Sou do Rio de Janeiro.
O samba e o tango, de Amado Régis (1937)
Foto de aparelhos de rádio em uma vitrine de Buenos Aires, do Archivo General de la Nación
Quando morava no Rio de Janeiro, estava num fim de tarde de domingo olhando pela minha janela de fundos do apartamento no Flamengo. Andava perdido nas luzes que vinham do Morro Azul quando vi por um recorte de uma janela de um prédio lateral, as pernas de um homem e uma mulher dançando tango.
A perspectiva, eu num andar superior, eles num andar inferior, só me deixava ver desde a metade das coxas deles para abaixo.
Pelas roupas e o que parecia, não eram pessoas jovens. Eles passavam na frente da minha visão e sumiam do marco da janela. Depois passavam para o outro lado, na cadência inconfundível do tango.
Alguma coisa mexeu no meu interior. Nesse momento compreendi a profundeza da minha parte argentina, ao sentir uma identificação indescritível, viscerosa, que aconteceu só pelo fato de ver essa imagem fragmentada, sem som, sem rostos, mas que tinha uma direção só: era tango. E o tango é Argentina, e mais que Argentina, é Buenos Aires.
Isso vivia em mim por relação assim como vivia o samba por adopção. Isso me levou à cidade onde eu tinha nascido, que estava longe, e da qual, na minha “brasileirice”, achava não sentir falta, além da saudade das pessoas queridas.
Por estes dias lembrei daquela imagem. O programa de rádio que estou fazendo, Club Brasil, já tem em duas emissões, vários ouvintes brasileiros radicados na Argentina. Parece que correu a voz e que a divulgação feita na unha chegou também à crescente comunidade de brasileiros que aqui vieram atrás de um amor, por compromissos de trabalho ou para se procurar a vida.
Quando eu programo a música penso nos muitos argentinos que gostam de música brasileira e que não tinham um espaço semelhante na rádio daqui. Mas também penso nesses brasileiros e coloco, quase como uma guinada, algumas músicas que sei que fazem parte do imaginário coletivo deles.
Tenho recebido e-mails comoventes para mim. Queria que eles sentissem pelo menos uma vez o que eu senti naquela tarde olhando pela janela. Talvez essa identificação, por longínqua que seja, os possa deixar mais leves para ir embora, para ficar, para andar pelo mundo soltos. Humanos.
Chegou a hora, chegou chegou
Meu corpo treme e ginga qual pandeiro
A hora é boa e o samba começou
E fêz convite ao tango pra parceiro.
Chegou a hora, chegou chegou
Meu corpo treme e ginga qual pandeiro
A hora é boa e o samba começou
E fêz convite ao tango pra parceiro.
"Hombre yo no sé porque te quiero
Yo te tengo amor sincero
diz a muchacha do Prata
Pero no Brasil é diferente
yo te quiero simplesmente
Teu amor me desacata.
Habla castellano num fandango
Argentino canta tango
ora lento, ora ligeiro
Pois eu canto e danço sempre que possa
Um sambinha cheio de bossa
Sou do Rio de Janeiro.
O samba e o tango, de Amado Régis (1937)
Foto de aparelhos de rádio em uma vitrine de Buenos Aires, do Archivo General de la Nación
12 comentários:
Bela memória, bela cena. Parece de um filme. Fiquei muito curioso para ouvir o programa. Não tem link?
Muito obrigado, Marcus.
Tem link, sim. É www.bluefm.com.ar e depois tem que clicar onde diz "radio en vivo"
No sábado tem entrevista com Maria Creuza.
É às oito horas da noite (nessa época do ano estamos iguais com as horas) e vai até as dez.
Abração
Juan,
Seu texto de hoje é comovente e brilhante.
Maria Creuza namorou com um primo meu quando eram muito jovens.
Beijos de Maria
Lindo post, Juan, me fez lembrar da ponte que você é entre dois mundos póximos, mas distintos. Sobre esta ponte, construída de sensibilidade, há passos intercalados de tango e samba. A música ali é linda.
A música postada foi gravada por Carmen Miranda. A Eva Perón que deu certo. kkkkkkkkkkkkkkkkk
Por isso gostas tanto de cinema Juan. As janelas sempre foram as primeiras telas dos sonhadores.
Bia Alves.
Muito legal, adoro tango tbm.
olhar pela janela..assim vou também vivendo eu ...exilado cá na minha cidade
linda cena, lindo texto, linda memória, lindo programa de rádio, lindo Juan
Belo texto,como sempre.Estou na sintonia da Blue FM as 19.25 no aguardo de seu programa .Perdí o da semana passada. Abraços do Lafa
Meus pais eram admiradores do tango, aos sábados se reuniam com amigos para dançá-lo ao som do bandoneon, os passos figurados na cadência de ‘La Cumparcita’, mesmo com suas pernas em descompasso e os braços em desalinho eu achava lindo.
Por que hoy es sabado... muito bom o programa. Parabéns,Abraços Lafa
Juan, não dá pra ouvir sem ser no sábado? Não fica armazenado e pá?
bjos
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