Bem antes de ter o desejo que motorizou o
Samba no pé, meu primeiro projeto de documentário relacionado com o Brasil e sua música, foi a trágica história de Francisco Tenório Cerqueira Junior, o Tenório Jr, o grande pianista seqüestrado e desaparecido na conturbada Buenos Aires de 1976.
Quando tive as primeiras notícias sobre o desaparecimento de Tenório e as suas circunstâncias, o primeiro que chamou minha atenção foi como eu, que na época já tinha interesse na cultura do Brasil, não havia conhecido esse fato através de alguma fonte brasileira. Afinal, Tenorinho não só era um cidadão brasileiro desaparecido na Argentina mas um músico que tinha viajado acompanhando ninguém menos que Vinicius de Moraes. Mas os brasileiros que eu consultei nem sabiam da tragédia ou meramente tinham “ouvido falar”. Tenório Jr. desapareceu duas vezes, a primeira nas mãos dos seus algozes e a segunda no silêncio do Brasil.
A estrutura do aparelho da repressão na Argentina já estava montada em 1976, na madrugada de 18 de março, seis dias antes da destituição de Isabel Perón pela Junta Militar.
Vinicius de Moraes já era uma figura muito popular e querida na Argentina. Ele tinha começado a excursionar por aqui no final da década de sessenta, junto com Toquinho, Maria Creuza e uma jovem e promissória cantora: Maria Bethânia. Aqui gravaram o hoje cultuado disco La Fusa, que ainda é na Argentina o disco de música brasileira mais vendido. Na época, Vinicius tinha um relacionamento com a argentina Marta Santamaría e muitos amigos, entre os músicos e atores daqui.
Nessa noite, depois do show no teatro Gran Rex, Tenorinho voltou pro hotel Normandie, na rua Rodríguez Peña. Ele marcara um encontro com dois amigos argentinos às duas horas da madrugada. As testemunhas dizem que pouco antes disso, ele deixou um bilhete colado na porta de um dos quartos, anunciando que ia dar uma saída para comprar um sanduíche ou cigarros (as testemunhas diferem) e um remédio. Anos depois, o dono de uma loja de conveniência da Rodríguez Peña com Corrientes, disse lembrar de uma pessoa estrangeira que comprou cigarros e entrou num Ford Falcon verde. Esses eram os carros que usavam os chamados
Grupos de tareas, militares e paramilitares que realizavam os operativos e seqüestros.
Tenório foi levado para uma delegacia da área e depois para a ESMA, a temível Escuela de Mecánica de la Armada, que funcionou como um dos campos de concentração onde aconteceram os crimes mais horrorosos.
Vinicius e o resto dos brasileiros foram do desconcerto ao desespero. O passado de diplomata do Poetinha lhe deu uma certa possibilidade de acesso às informações. Mas ninguém sabia de nada. O poeta Ferreira Gullar, que atravessava os anos do seu exílio portenho, também se interessou pelo destino de Tenório Jr. Nada.
Vinicius chegou a dar uma entrevista para a televisão onde o seu rosto aflito denunciava o que estava acontecendo, e inclusive chegou a falar de Tenório na entrevista, que depois não foi emitida.
Os músicos voltaram para o Brasil e começaram a se mexer para conseguir informações. Vinicius entrou com pedido de habeas corpus e rapidamente distribuiu um abaixo-assinado que foi entregue às autoridades. Mas o governo continuou a repetir que nada sabia e o Itamaraty só manifestou que “envidava esforços” para achar o pianista.
Em 1979, em entrevista à Folha de São Paulo, Elis Regina declarou, pouco antes de uma viagem a Buenos Aires:
- Vou fazer um giro pela Argentina que tem não só, pra mim, a finalidade de ir até a Argentina pra fazer um negócio que estão me pedindo já há algum tempo, mas, principalmente, ver se eu agito o lance do Tenório Júnior com o pessoal de lá que sabe onde ele está.
Na verdade Elis, que foi uma das pessoas que mais agitou mesmo para obter informações, se baseou na declaração de um compositor argentino que disse a ela ter visto o Tenório numa prisão na cidade de La Plata.
Por esses tempos, um jornalista -cujo nome desconheço- também andou por Buenos Aires atrás de notícias. Mas as pesquisas batiam com o silêncio oficial.
- Olha, essa pessoa não está viva nem desaparecida, e me disseram que é melhor o senhor deixar de perguntar e voltar para o Brasil.
Só em 1986 saiu à luz outra versão. Um argentino de sobrenome Vallejos foi ao Rio de Janeiro com uma série de dossiers sobre brasileiros desaparecidos na Argentina (seriam sete segundo constam nos arquivos do Brasil) para vender à imprensa. O tal Vallejos teria feito parte do grupo que seqüestrou Tenório Jr. Ele mostrou documentos em que constaria que o Capitão Acosta, célebre torturador da ESMA atualmente preso, entrou em contato com o SNI para requerir informações sobre o cidadadão brasileiro Francisco Tenório Jr.
Outro ofício, datado em 25 de março, uma semana depois do desaparecimento diz, com um cinismo estarrecedor
1) Lamentamos informar a essa representação diplomática o falecimento do cidadão brasileiro Francisco Tenório Júnior, Passaporte n° 197803, de 35 anos, músico de profissão, residente na cidade do Rio de Janeiro.
Mesmo havendo recebido esse ofício, o governo brasileiro não tomou nenhuma iniciativa para recuperar o corpo de Tenório e nem sequer comunicar à família os acontecimentos.
Na época ainda não estava “oficializado” o Plano Cóndor, mas já existia a colaboração e a troca de informações entre as ditaduras da América Latina.
Em 2006, o Estado brasileiro reconhece ter “feito pouco” para dar com o paradeiro de Tenório Jr e o juíz Alfredo França Neto dita sentença de idenização à mulher -que nem status de viúva tinha- e os filhos, por danos morais e materiais. Na sentença, França Neto diz:
“No caso concreto, a violação à dignidade da pessoa humana ocorre no momento em que o Estado não protege, como deve, os seus nacionais, e não atua eficientemente, quando menos, na busca das informações sobre o paradeiro e o destino de Tenório Júnior, e deixa sem qualquer notícia a sua família, ao longo de mais de vinte anos...”
O que parece chegar mais perto da realidade é que Tenorinho foi levado pelo fato de ser um cabeludo de barba que andava na madrugada pela rua, o que já era motivo suficiente para ser detido nos anos de chumbo. Ou que ele foi confundido com mais alguém -o que também acontecia freqüentemente- e depois de ser torturado e sem nenhuma referéncia, virou mais um caso de “queima de arquivo”.
Por acaso estava eu nas filmagens do Samba no pé quando li uma entrevista com o diretor espanhol
Fernando Trueba em que ele anunciava o projeto de um documentário sobre Tenório Jr. Deixou então de ser para mim uma possibilidade de filme, mas continuou sendo uma história que sempre me comoveu.
Tenório Jr. era um grande pianista de jazz, dos que experimentaram com samba-jazz e desaguaram na bossa nova. Seu disco de 64, Embalo, é uma referéncia.
Sua tragédia, um absurdo que retrata o lado mais cruel da nossa história.
Foto de Tenório Jr. sem crédito do autor
Reprodução da capa do disco Embalo