
Durante anos eu não conheci outra coisa que não fosse o pequeno quintal da casa e a voz de Lalla Asma gritando meu nome: «Laila!». Como eu disse, não sei qual é o meu verdadeiro nome, mas tenho me acostumado com o que me pôs minha senhora, como se fosse o que minha mãe escolheu para mim. Mas também penso que algum dia alguém vai me chamar pelo meu verdadeiro nome e que então me estremecerei e o reconhecerei.
Lalla Asma também não era o verdadeiro nome da minha senhora. Ela chamava-se Azzema e era judia espanhola. Quando explodiu a guerra entre os judeus e os árabes, no outro extremo do mundo, ela foi a única que não abandonou o Mellah. Ficou trancada atrás da grande porta azul e se recusou a sair. Até que uma noite eu cheguei e tudo mudou na vida dela.
Eu a chamava as vezes de «senhora» e outras de «vó», porque ela foi quem me ensinou a ler e escrever em francês e em espanhol, me iniciou no cálculo e na geometria e me transmitiu as bases da religião -a dela, na que Deus não tem nome, e a minha, na chama-se Alá-. Ela lia para mim passagens dos seus livros sagrados e me ensinava tudo que eu não devia fazer, como assoprar sobre o que a gente vai comer, por o pão virado ou limpar as partes íntimas com a mão direita. Ela me dizia que há de se dizer sempre a verdade e lavar todos os dias dos pés à cabeça.
Em troca, eu trabalhava para ela da manhã até a noite no quintal, passando a vassoura, cortando lenha para o fogão ou lavando roupa. Eu gostava muito de subir no teto para estender a roupa: de lá eu via a rua, os tetos das casas vizinhas, as pessoas que passavam, os carros e inclusive um pedaço do grande rio azul. Desde lá os ruidos pareciam-me menos terríveis. Eu achava que estava fora do alcance de todos.
Quando ficava muito tempo no teto, Lalla Asma gritava meu nome desde o grande quarto cheio de almofadas onde ela ficava o dia inteiro. Me dava um livro para que eu lesse ou bem fazia ditados e me perguntava coisas das lições anteriores.
Como recompensa, me deixava ficar com ela na sala e colocava os discos dos seus cantores preferidos: Um Kalsum, Said Darwich, Hbiba Misika, e especialmente Fayruz, com voz grave e rouca dele, e a formosa Fayruz Al Halabiyya, que canta Ya Kudsu. Toda vez que ela ouvia o nome Jerusalém, Lalla Asma começava a chorar.
O peixe dourado (Poisson d'or, 1999) (fragmento), de Jean-Marie Gustave Le Clézio, prêmio Nobel de Literatura 2008, escritor do desarraigamento que se diz orgulhosamente metade francês e metade da Ilha Maurício; e que sustenta que o romance é "o melhor sistema para entender o mundo"
Versão para o português de Juan Trasmonte
Foto de Le Clézio da Agência AFP
Lalla Asma também não era o verdadeiro nome da minha senhora. Ela chamava-se Azzema e era judia espanhola. Quando explodiu a guerra entre os judeus e os árabes, no outro extremo do mundo, ela foi a única que não abandonou o Mellah. Ficou trancada atrás da grande porta azul e se recusou a sair. Até que uma noite eu cheguei e tudo mudou na vida dela.
Eu a chamava as vezes de «senhora» e outras de «vó», porque ela foi quem me ensinou a ler e escrever em francês e em espanhol, me iniciou no cálculo e na geometria e me transmitiu as bases da religião -a dela, na que Deus não tem nome, e a minha, na chama-se Alá-. Ela lia para mim passagens dos seus livros sagrados e me ensinava tudo que eu não devia fazer, como assoprar sobre o que a gente vai comer, por o pão virado ou limpar as partes íntimas com a mão direita. Ela me dizia que há de se dizer sempre a verdade e lavar todos os dias dos pés à cabeça.
Em troca, eu trabalhava para ela da manhã até a noite no quintal, passando a vassoura, cortando lenha para o fogão ou lavando roupa. Eu gostava muito de subir no teto para estender a roupa: de lá eu via a rua, os tetos das casas vizinhas, as pessoas que passavam, os carros e inclusive um pedaço do grande rio azul. Desde lá os ruidos pareciam-me menos terríveis. Eu achava que estava fora do alcance de todos.
Quando ficava muito tempo no teto, Lalla Asma gritava meu nome desde o grande quarto cheio de almofadas onde ela ficava o dia inteiro. Me dava um livro para que eu lesse ou bem fazia ditados e me perguntava coisas das lições anteriores.
Como recompensa, me deixava ficar com ela na sala e colocava os discos dos seus cantores preferidos: Um Kalsum, Said Darwich, Hbiba Misika, e especialmente Fayruz, com voz grave e rouca dele, e a formosa Fayruz Al Halabiyya, que canta Ya Kudsu. Toda vez que ela ouvia o nome Jerusalém, Lalla Asma começava a chorar.
O peixe dourado (Poisson d'or, 1999) (fragmento), de Jean-Marie Gustave Le Clézio, prêmio Nobel de Literatura 2008, escritor do desarraigamento que se diz orgulhosamente metade francês e metade da Ilha Maurício; e que sustenta que o romance é "o melhor sistema para entender o mundo"
Versão para o português de Juan Trasmonte
Foto de Le Clézio da Agência AFP
Olá
ResponderExcluirSeu link foi adicionado no zoomdigital.org
Obrigado por mudar
atenciosamente
PHilipe carodso
Eu li a matéria no Blogueiro Repórter, adorei, tb acho q a enciclopédia livre não é confiável, por um motivo óbvio, nem todo mundo é confiável, ou melhor, quase ninguém n é mesmo?
ResponderExcluirBeijos querido, parabéns pelo blog!
Super bacana!
ResponderExcluirInfelizmente é assim, Ciça. Seria legal que a gente pudesse confiar mais.
ResponderExcluirBjs.
Valeu Tâmara. Obrigado por voltar sempre
ResponderExcluirbjs
Oi Juan,nao pode faltar Roman Polansky em "The Tenant", na Argentina conhecida como "El Inquilino"...Bj.
ResponderExcluirPicoroco