
Em 1938, há quase quarenta anos, Carybé (Héctor Bernabó), aportou na Bahia, vinha carregado de índios, sombreros, tangos. Na opinião de várias senhoras da zona do Maciel, era um janota elegantíssimo, trajava polainas, colete e paletó lascado atrás, moda audaciosa na época. Um inquieto em busca de sua pátria perdida, do chão de sua sensibilidade, de seu porto de abrigo, de seu lar. Onde a terra verdadeira desse cidadão brasileiro nascido em Buenos Aires, adolescente no Rio, jovem artista na Argentina, aventureiro nos caminhos da Bolívia e do Peru, na selva do Chaco, biscando e buscando-se? Eis que chega à Bahia, a seu sol, a seu mar, a seu azul mágico, à sua mistura. Deslumbrado, descobre o chamego, o dengo, a magia. Nos quarenta anos decorridos a partir do momento solene do encontro do artista com seu chão, com sua pátria, com seu lar, Carybé plantou raízes tão fundas na terra baiana como nenhum cidadão aqui nascido e amamentado. Bebeu avidamente essa verdade e esse mistério, fez da Bahia carne de sua carne, sangue de seu sangue, porque a recriou a cada dia com maior conhecimento e amor incomparável.
Em sua casa de Brotas, existe um quadro antigo pintado por Carybé logo após o desembarque na terra baiana, naqueles idos de 1938. É uma tela de grande beleza -o enterro de uma puta, na zona- onde esplende uma Bahia de súbito revelada mas não possuida em suas entranhas: ei-la misturada de espanholismos, com pedaços de Gardel e cores índias do Altiplano, uma Bahia que o artista apenas antevia na hora comovida da descoberta.
Esse mesmo tema da Bahia popular na hora cruel do enterro da moça meretriz, no instante da dor desatada na ladeira, Carybé o retomou recentemente, num grande quadro hoje de propriedade, se não me engano, do Museu da Manchete: límpida Bahia em sua mistura fundamental, completa e perfeita, despida dos acréscimos que o artista e filho pródigo trouxera em sua jovem alma vária e inquieta. Agora são uma única realidade, a terra e o criador, a inspiração e a obra realizada: nesses quarenta anos Carybé se fez não apenas o grande mestre baiano, mas o cidadão baiano por excelência.
Sua obra nos engrandeceu, deu-nos maioridade artística. A Bahia, ao mesmo tempo, fez dele, o grande mestre do desenho, da pintura, da escultura. Artista principal da Bahia, dela nasce todas as manhãs e todas as manhãs a recria em sua beleza, em seu mistério, em toda sua verdade.
Outro dia um jornalista lhe-perguntou:
- Onde o senhor nasceu, seu Carybé?
- Nas Sete Portas, minha filha -respondeu.
Nasceu ou renasceu, que importa?
Mestre Carybé, de Jorge Amado, do livro Bahia de Todos os Santos - Guia de ruas e mistérios, publicado em 1945

Reprodução do óleo Bahia, de Carybé (1971)
Foto de Pierre Verger, Jorge Amado e Carybé, de Zélia Gattai (Fundação Casa de Jorge Amado)